**Texto por Marcio Joviano, pai do João e Antônio
O mais próximo que cheguei desta revista foi uma campanha na escola que usava o logo da revista (e sim, eu imaginei que sairia na capa da edição) para me eternizar na parede da casa da minha mãe, onde está até hoje. Nem sei por onde começar. Há muito a dizer. Mas aproveito a fartura no dizer e a oportunidade para propor uma reflexão franca sobre um dos fantasmas que assola a paternidade dos meus iguais: a ausência.
Esta narrativa persegue homens brasileiros de todas as cores e classes sociais. São 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai em seu registro de nascimento, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, com base no Censo Escolar de 2011. Um número alarmante de histórias das quais somos íntimos, famílias chefiadas por mães solo, assim como a minha foi, dando a impressão de que era essa a regra. O que há de errado em ser pai afinal? O que falta no processo de formação do homem brasileiro que exclui o afeto pelas suas crias, ao ponto de tratar seus filhos como algo descartável?
Não. Não vou utilizar dados para afirmar que pais são ausentes e ponto. Proponho um caminho diferente e lhe convido para um passeio comigo. Em conversa recente numa live organizada pelo perfil @PaisPretos, do Humberto Baltar, desenvolvemos um exercício incomum sobre o assunto: olhar e comentar o homem a partir da nossa vivência de homem preto e indicar questões exclusivas do nosso círculo. Por várias vezes os participantes perguntaram por que alguns pais se afastam dos filhos após o fim do relacionamento.
No meu registro, tenho o nome do meu pai, mas também trago comigo a vivência de uma separação durante a infância. Uma mulher, dois filhos, casa, contas, alimentação, tudo era um problema nosso, bem pouco dele. Meu pai, todavia, não havia desaparecido. Me via sempre, sem dar o apoio que eu precisava nos momentos em que eu precisava. Hoje meu pai é uma oportunidade de entender o efeito de escolher redimir o que eu abri mão de guardar.
Nos meus filhos, encontro o diferencial do que tive de mínimo. Existe uma necessidade de afetos em mim que é realizada em João e Antônio. Esses afetos se estendem até meus pais e se realiza na satisfação que eu descobri ao ver o tanto que eles são felizes nos meus filhos. Nosso cotidiano é corrido, mas hoje não compreendo meus fluxos sem a presença dos meus filhos. Meus meninos são permanentes, uma necessidade.
O afeto dos abraços, dos sorrisos, das gargalhadas e dos tons de perguntas são registrados na presença. Não é pela obrigação, é por viver seus filhos. É necessário entender que a paternidade vai além de compromissos financeiros, de passeios e de divertir filhos. Ela é vínculo, tem que ser cuidada como material frágil, visitado diariamente até que haja intimidade e confiança.
Hoje, desenhar afetos permanentes é uma prioridade que tenho aprendido com outros pais que têm o desejo de não replicar em seus filhos os traumas que trazem consigo na vida adulta. A paternidade se realiza antes de termos nossas questões resolvidas e, para pais pretos, isso deve ser observado com mais carinho. Entre as muitas violências que são oferecidas ao povo preto diariamente, o desmantelo familiar é presente e, por vezes, permanente. Logo nós, um povo que tem em sua identidade filogenética o cuidado pelo todo. Criança preta é filho da comunidade; para gente preta, o filho é responsabilidade social. E o afastamento das nossas crias também deve ser compreendido como uma violência, articulada de muitas formas, que atinge ambos os envolvidos.
Apesar das marcas do passado, os novos tempos apontam dias de melhor satisfação nas nossas relações. Nos alimentamos de amor, e daqui para o além, vamos nos encontrar em amor mais vezes. Antes, mais frequentes, mães, que sempre estarão envolvidas em nossas memórias mais afetuosas, mas também de muitos pais que estão buscando uma relação diferente da relação que tiveram (ou não) com seus pais. Pai, abrace sua cria apertado, que seja uma experiência de afeto ímpar e sem prazo de validade, mesmo com a sua morte física ou via morte de afeto.
E indico a última como alguém que já a experimentou. Matei meu pai por anos, e foi muito difícil chamá-lo para fora da caverna onde o havia trancado. Quando o convidei para sair, eu era uma pessoa diferente, com menos ausências, curadas no João e amplificadas no pequeno Antônio, que me ensinaram que, por mais que eu me entendesse injustiçado pelo sentimento de abandono à qual a imagem de meu estava associada, eu tinha o poder de redimir tudo aquilo na minha paternidade. Entendi que o espaço que eu via ser consumido pela presença dos meus filhos na minha vida poderia alcançar meu pai também. Eu desconhecia as razões que o levaram a desaparecer no meu dia a dia até entender que a permanência na vida de um filho vai além do que eu posso consumir. Ela se perde no amplo campo do amar, um campo pouco explorado por homens, ensinados a conquistar, a dominar e a consumir.
Nos meus meninos encontro o que acreditei ser fundamental até aqui. Descobri que a saudade se revelava na presença deles, e que essa saudade clamaria por um novo encontro. E assim, bem aos pouquinhos, dialogando com nossos corpos, com colo, com beijos, abraços e sorrisos, vamos aprendendo que nós somos indispensáveis um para o outro e que é inviável ser pai ou filho de outra forma.