No mundo conectado de hoje, é difícil encontrar uma criança que não tenha contato com telas desde muito cedo. Bebês que ainda nem aprenderam a falar já sabem desbloquear o celular dos pais, abrir aplicativos e até escolher seus vídeos favoritos. O problema é que esse contato tão precoce — e muitas vezes excessivo — com tecnologia pode ter efeitos sérios no desenvolvimento cognitivo, emocional e social dos nossos filhos.
Estamos criando uma geração de crianças que já nasce online. Muitas preferem passar horas em frente a celulares e tablets a brincar ao ar livre ou interagir com outras pessoas. E, apesar de parecer algo inofensivo, essa rotina de estímulos rápidos e constantes pode atrapalhar (e muito) o desenvolvimento saudável.
Quanto mais tempo uma criança passa em frente às telas, mais difícil pode ser para ela se desconectar. A conversa com os outros vai ficando escassa, o corpo se movimenta menos e até sentimentos simples do dia a dia, como tédio ou frustração, tornam-se difíceis de lidar. Isso acontece porque celulares, tablets e TVs oferecem estímulos o tempo todo: notificações, vídeos, curtidas e atualizações rápidas fazem com que o cérebro libere dopamina — um neurotransmissor ligado à sensação de prazer. É aí que o uso pode acabar virando um hábito difícil de controlar.

Telas demais, palavras de menos
Pesquisas recentes já mostram os efeitos desse uso excessivo. Um estudo publicado pelo The Journal of the American Medical Association Pediatrics revelou que bebês de apenas um ano, quando expostos a mais de quatro horas de tela por dia, apresentaram mais dificuldades para se comunicar e resolver tarefas simples entre os dois e quatro anos de idade. Isso porque o excesso de estímulos deixa o cérebro em estado de alerta constante, o que pode deixar a criança mais agitada, ansiosa e com dificuldade para se concentrar.
“Em termos de cognição e de aprendizado tem estudos que correlacionam diretamente a criança que com dois anos de idade tem uma hora a mais de acesso à tela, aos dois anos vai ter uma nota 6% menor em matemática na quarta série. As crianças que utilizaram tela quando mais novas têm um desempenho menor em provas no fim do ensino médio”, relatou o neurologista Vinicius Lopes, filho de Nilene e José João, especialista em neurologia infantil em entrevista para a Pais&Filhos.
Além do aprendizado, a linguagem também acaba sendo afetada. Como muitos conteúdos online usam um vocabulário simples e repetitivo — especialmente músicas e desenhos —, a criança leva essa limitação para o dia a dia. “Ao levar esses conhecimentos trazidos pela tela, a criança passa por dificuldades e pode até não saber relacionar uma imagem a um objeto. Além disso, por ter menor convívio em sociedade, a linguagem se torna mais atrasada”, explica o neuropediatra, destacando que esse tipo de exposição frequente pode dificultar o desenvolvimento da comunicação.
Na sala de aula, essa diferença também é perceptível. Kelly Cristina, é professora de língua portuguesa da 1ª série do ensino fundamental, acompanha de perto os efeitos da exposição às telas em seus alunos e foi entrevistada pela Pais&Filhos. “A gente percebe que o desenvolvimento dela não acontece da mesma forma em que acontece com crianças que são estimuladas de uma forma diferente. Tem sim como perceber um perfil de uma criança que consegue se concentrar mais tempo, que tem uma rotina de leitura, de contato com a natureza e de exercícios físicos. Ao compararmos com uma criança que acaba não tendo uma rotina de autocuidado e que fica mais tempo com acesso às telas, tem uma diferença na concentração e no comportamento”, diz.
Outro ponto que merece atenção é o tipo de conteúdo que as crianças estão consumindo. Muitos desenhos, por exemplo, acabam mostrando atitudes agressivas ou até falta de respeito com os pais — e, como as crianças estão em fase de desenvolvimento, elas tendem a repetir o que veem. Isabela Duarte, anestesista e mãe de Júlia, Luísa e Maria, explica em entrevista para a Pais&Filhos: “À medida que as crianças aprendem, especialmente as menores, muito por imitação, é essencial ensiná-las o que é certo e errado. Os desenhos acabam servindo como exemplo para elas. Às vezes, um personagem tem um comportamento mais agressivo ou desrespeitoso, e as crianças podem começar a imitar isso. Isso afeta diretamente o mecanismo de aprendizagem”.
Por trás da tela
Além do desenvolvimento e do comportamento, há um risco ainda mais preocupante: a segurança digital. A internet é um ambiente aberto — e crianças, infelizmente, podem ser alvo de pessoas mal-intencionadas. Casos de violência e exploração infantil online têm aumentado, inclusive com o uso de inteligência artificial para criar deepfakes — adulterações realistas de imagens e vídeos, que colocam nossos filhos em situações perigosas e não consentidas.
Hoje em dia, muitas crianças e adolescentes estão trocando o olho no olho pelas telas, e isso tem impacto direto nos vínculos familiares, na convivência e até na forma como desenvolvem empatia. Afinal, é convivendo que se aprende a conviver. “As crianças e adolescentes estão vivendo um momento em que a vida real, o olho no olho, os vínculos familiares e a convivência estão sendo colocados em segundo plano. Convivência se aprende convivendo, empatia se desenvolve na relação com o outro. Identidade e pertencimento também. Tudo isso — aspectos cognitivos, acadêmicos e socioemocionais — estão sendo colocados em xeque”, comenta em entrevista para a Pais&Filhos, Luciana Loureiro, educadora parental e mãe de Jean.

No contexto da crescente presença digital na vida das crianças, é essencial destacar os riscos associados ao uso descontrolado da tecnologia. Nos últimos 12 meses, o relatório da Childlight revelou que 12,6% das crianças foram vítimas de captura, compartilhamento e exposição não consensual de imagens sexuais, enquanto 12,5% foram alvo de conversas obscenas indesejadas, incluindo chantagem sexual. Estes crimes, que agora também envolvem o uso de inteligência artificial (IA) para criar deepfakes — vídeos e fotos manipulados para se parecerem reais — estão em ascensão. Um estudo do Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas (NCMEC) mostrou que a exploração sexual infantil envolvendo IA generativa tem aumentado consideravelmente.
Equilíbrio é possível
A boa notícia é que dá, sim, para encontrar um equilíbrio saudável no uso da tecnologia durante a infância. Os especialistas recomendam que, até os dois anos, o ideal é evitar completamente o uso de telas. Dos 3 aos 10 anos, o tempo deve ser de, no máximo, 1 a 2 horas por dia. Já dos 11 aos 18 anos, o limite é de até 3 horas — sempre com acompanhamento de um adulto. O mais importante é garantir que a criança tenha espaço para brincar, correr, explorar o mundo real e conviver com outras pessoas.
Isabela Duarte, mãe de três meninas — de 9 anos, 7 anos e um bebê de 7 meses — compartilha como faz esse equilíbrio na prática: “A bebê de 7 meses não assiste nada, é zero telas. As meninas mais velhas assistem em média uma hora por dia, apenas nos finais de semana. Em ocasiões especiais, como feriados e férias, elas assistem um pouco mais, mas sempre tentamos manter esse limite diário”.
Especialistas reforçam que, para proteger o desenvolvimento saudável, é crucial que o uso da tecnologia seja moderado e supervisionado. Além disso, é fundamental que os aparelhos sejam desligados uma ou duas horas antes de dormir, que as telas não sejam usadas durante as refeições e que as crianças sejam incentivadas a participar de atividades ao ar livre e a brincar de forma criativa, sem a mediação de tecnologias.