Endrick, jogador do Palmeiras que tem se destacado também na seleção brasileira, vem chamando atenção do mundo pelo futebol, inclusive sendo previamente contratado pelo Real Madrid assim que completar 18 anos de idade.
O atleta, que disputa neste domingo a final do campeonato Paulista, contra o Santos, a partir das 18h, emocionou muita gente também fora de campo ao dedicar uma carta ao irmão mais novo, Noah, de 4 anos.
Leia a carta de Endrick para o irmão na íntegra
Querido Noah, Eu te amo. Esta é a primeira coisa, acima de tudo. Desde o primeiro dia, sinto que temos uma ligação muito especial. Eu nunca te contei isso, mas, no dia do seu nascimento, parece que você só estava esperando eu marcar um gol para nascer.
É verdade, irmão. Eu estava jogando uma partida importante na época, tinha apenas 13 anos, e você não queria sair da barriga da mamãe. O relógio fazia tic-tac-tic-tac sem parar, e mamãe e papai se perguntavam o que você estava esperando. Então, de repente, o Pai recebeu uma ligação de seu amigo que estava no jogo.
Ele disse: “Douglas!! Douglas!! Endrick acabou de fazer um gol!!”. E então, naquele exato momento, tudo que se ouviu no quarto do hospital foi Wwwwwwaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!! Você finalmente saiu para comemorar comigo. Quando cheguei ao hospital, te dei um presente de aniversário. Eu não tinha dinheiro para comprar um brinquedo, mas levei pra você a bola de ouro que ganhei do torneio.
Viu só? Na nossa família, não nascemos em berço de ouro. Nascemos no berço do futebol. Não sei quando você vai ler esta carta, mas agora você tem quatro anos, e nossas vidas estão mudando muito rápido. Nos próximos meses, vou para a Espanha jogar pelo Real Madrid — sim, o time que eu sempre escolho no PlayStation quando você me assiste jogando. Eu sei que o mundo vai querer saber sobre a história da nossa família. E é uma história maluca, irmão! Então esta é minha chance de te contar como tudo realmente aconteceu, e com a Mãe e o Pai aqui para me ajudar.
Como você sabe, na nossa família tudo sempre começa e termina com a bola. A Mãe diz que, quando eu era um bebê, nunca fiz vvvrrooooom!!! como você. Se me dessem um brinquedo, eu ficaria com ele cinco segundos e depois colocava de volta na caixa. Tudo que eu queria era “bola, bola, bola”.
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Uma bola de fita. Uma bola de meia. Uma bola de basquete. Pouco importava. Se fosse redonda ou até mesmo quadrada, eu queria mesmo é sair chutando. Quando ganhei a bola da Copa de 2014, a Brazuca, do time do pai na várzea, eu ficava só olhando as cores, como se fosse uma pintura. Eu dormia abraçado com ela! Está no sangue, irmão.
Pode perguntar pra Mãe como eu me apresentava pras pessoas. “E qual é o seu nome, moleque?” “Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.” As pessoas riam de mim, tá ligado? “Que criança mais fofa”. Mas, irmão, eu tava falando sério. Eu tinha certeza que conseguiria, e a nossa Mãe ainda chora quando se lembra disso. Ela sempre disse que as palavras têm poder.
Naquela época, a gente não morava em um apartamento chique como agora. Não tinha geladeira cheia dos iogurtes que você tanto ama. A gente vivia no alto do morro, num lugar chamado Vila Guaíra, e a vida era diferente. Você vai ouvir todo tipo de história sobre a gente vindo de outras pessoas nos próximos anos, e até vão dizer que tudo foi “dor e sofrimento”. Mas a verdade é que eu tive uma infância incrível, graças a Deus, e graças a tudo que a Mãe e o Pai fizeram por mim. E graças ao futebol, claro.
Acho que nunca te contei isso, mas quando eu tinha mais ou menos a sua idade, nossa rua ficava nesse morro. A gente jogava futebol lá com todo o pessoal do bairro, e um dos motivos que fazia a gente ser tão bom é que, se a bola rolasse ladeira abaixo, quem perdia o gol tinha de ir até a favela lá embaixo para buscar. Tipo, o moleque corria, passava por um jogador e, se perdesse o gol, tinha que correr ainda mais pra pegar a bola antes de ela chegar lá embaixo. Era cansativo, mas as regras na rua são muito claras. Quem chuta, busca!
Tenho muitas saudades daquela época, quando eu era apenas uma criança e o futebol, só um jogo. Quando os amigos ficavam sentados, batendo papo… É resenha que fala, né? Eu realmente gostaria que a gente pudesse ter vivido esse tempo juntos, irmão. Quando penso nisso, fico feliz e triste ao mesmo tempo. Boas lembranças de um tempo que eu sei que não vai voltar, sabe? Até mesmo as lembranças ruins, às vezes, são doces.
Quando você crescer, vai ouvir a história da “conversa no sofá”. Tem um monte de gente que já fala sobre isso no Brasil, mas eles não entenderam a história. Eles falam que éramos pobres e que não tínhamos o que comer, mas isso não é verdade. Eles não conhecem nossa Mãe. Como ela mesmo diz: “Eu sou muito mulher pra deixar comida faltar pros meus filhos”.
A verdade é que aquele dia no sofá eu vi nosso pai chorar. Acho que foi a primeira vez na minha vida que entendi que a nossa situação não era fácil. Nós sempre tivemos o essencial na nossa mesa. Mas nem sempre tínhamos o suficiente para tudo que queríamos. Entende a diferença?
A gente sempre vivia no limite. O Pai conta que eu sentei no sofá e disse a ele: “Não se preocupe. Com o futebol, vou dar uma vida melhor pra gente.” Antes daquele dia, eu era só uma criança e o futebol, apenas um jogo. Depois daquele dia, o futebol se transformou no caminho para uma vida melhor.
Algumas semanas depois, fui pra São Paulo para treinar na Academia do Palmeiras e anotei meu primeiro objetivo: “Melhorar a situação da nossa família”. Colocar objetivos é algo importante da minha vida. É a minha maneira de conversar com Deus. Quando fui para o Palmeiras, sabia que faria pelo menos 2 a 3 refeições por dia na escola e no treinamento. Mas para a Mãe, infelizmente, não foi tão simples…
Ela deixou sua vida pra trás para apoiar meu sonho em São Paulo. O clube só tinha espaço para mim, mas ela disse que não tinha como eu ir sem ela. O Pai ficou em Brasilia, trabalhando para mandar dinheiro pra gente, enquanto ela foi morar comigo em uma casinha junto com alguns dos meus companheiros. Todos debaixo do mesmo teto. Mas quando a gente ia treinar, a Mãe não tinha com quem conversar. Não tinha TV nem internet em casa, então, ela levava a Bíblia para o parque, sentava e falava sozinha com Deus. A única coisa que ela possuía na casa era uma cadeira. Ela deixava a bolsa em cima dela e, quando a gente ia pra cama, ela dormia um pouco no colchão que ficava no chão.
Eu sei que é difícil para você imaginar a mamãe dormindo no chão, mas esta é a verdade. Foi assim que aconteceu. Às vezes, a Mãe estava literalmente contando os últimos trocados. O Pai continuava mandando dinheiro, mas naquela época não tinha o Pix, então, o dinheiro demorava um ou dois dias para cair na conta. Nos dias bons, quando o dinheiro rendia, a Mãe cozinhava linguiça para os outros meninos. Mas na maioria dos dias, só dava pra gente mesmo comer, e ela se sentia muito culpada fazendo comida em casa, porque os meninos sentiam o cheiro da carne cozinhando, e eles perguntavam se tinha alguma pra eles também….. O que ela poderia dizer? Não sobrava nada.
Na verdade, foi tão doloroso que ela até parou de cozinhar. Lembro que teve momentos em que eu estava meio com fome, pouco antes de dormir, sabe? Tipo, eu podia comer. Então, eu perguntava pra Mãe se tinha alguma coisa e ela dizia: “Vai dormir, Endrick, que a fome passa”.
Outras vezes, quando a gente estava desesperado por dinheiro, a Mãe conseguia pedir emprestado arroz ou mesmo algum trocado. Mas um dia, irmão… Ela não tinha mais para quem pedir. Estava sem dinheiro e sem ter a quem recorrer. Ela ligou para o Pai e disse: “Douglas, estou com fome… Não sei o que fazer”.
O Pai mandou 50 reais, mas o dinheiro só ficaria disponível no dia seguinte. Ela se ajoelhou e orou a Deus pedindo ajuda. Então, ela pegou a bolsa na cadeira e começou a revirar, cavando até o fundo. Ela achou 2 reais, irmão. Trocados perdidos. Um presente de Deus.
Ela foi ao supermercado e comprou broinha de milho de dois dias. E se você perguntar a ela agora, ela vai te dizer que o sabor estava maravilhoso. A Mãe fala que a fome traz uma sensação muito estranha. Faz com que até broinha de milho de dois dias tenha o melhor gosto do mundo.
Para ser sincero, gostaria de não ter que te contar isso, porque a fome não é uma coisa boa. Espero que você nunca experimente isso, como mamãe passou. Mas é uma parte importante da nossa história. Na próxima vez que você encontrar com ela, dá um abraço forte e agradeça, porque sem os sacrifícios dela não teríamos a vida que temos hoje.
Na verdade, nem mesmo eu conhecia essas histórias até bem pouco tempo atrás, porque a Mãe sempre escondia sua dor para proteger meu sonho. Eu nunca vi a Mãe chorar. Ela costumava entrar no banheiro para eu não perceber. Mas a Mãe telefonava para o Pai muitas vezes, dizendo que não aguentava mais, que queria voltar pra casa, só que aí eu voltava dos treinos contando histórias sobre o que aconteceu naquele dia, e os gols que marcamos… E ela via meus olhos brilhando. Então ela ficou. Por mim. Pela nossa família.
Essa é a nossa Mãe, sempre fazendo o que é necessário. Às vezes, ela é a sargento, aquela que briga e grita, dizendo as coisas que precisamos, mas não queremos ouvir. E outras vezes ela nos abraça e prepara as melhores omeletes do planeta. O que quer que ela faça, lembre-se de que é tudo por um motivo simples. Ela sempre quer o que é melhor para nós.
O Pai também se sacrificou muito. Depois de alguns meses, ele veio para São Paulo nos apoiar e foi até o Palmeiras, pedindo ao clube um emprego onde fosse possível. Eles só tinham uma vaga. O Pai começou a trabalhar na equipe de limpeza, dentro do estádio. Ele sempre sonhou em estar em um ambiente de vestiário quando era menino, então, ele ia trabalhar com um sorriso no rosto. Ele ficou lá por três anos, primeiro catando lixo no estádio e depois sendo promovido para limpar o vestiário do time titular. Ele dizia para os jogadores que um dia seu filho jogaria com eles.
Certo dia, o goleiro Jailson percebeu que o Pai estava ficando cada vez mais magro. No refeitório, a equipe de limpeza e o pessoal comiam com os jogadores, e ele viu que o Pai estava apenas tomando sopa. Então, ele colocou o braço em volta do Pai e disse: “Ei, Douglas, me dá seu telefone que eu quero ligar para sua esposa”. Daí o Pai falou: “Minha esposa? Não é assim não, Jailson! O que você quer com minha esposa???”. Jailson, então, disse: “Não, não, quero que ela me conte o que está acontecendo com você, que nunca come nada. Você está bem?”.
O Pai ficou com vergonha de explicar o que estava acontecendo, então, ligou para a mamãe, e ela contou para o Jailson o que realmente estava acontecendo. História real. Como o Pai queimou a mão quando era criança em um churrasco, e a coisa foi tão séria que ele quase perdeu a mão. Os médicos deram remédios fortes para combater a infecção, e isso enfraqueceu seus dentes. Na época em que ele trabalhava no Palmeiras, todos os dentes estavam caindo. Ele só podia tomar sopa.
Então o Jailson saiu fazendo uma vaquinha com todos os jogadores e eles surpreenderam o papai com dinheiro para ele consertar os dentes. Deus trabalha de maneiras incríveis, irmão. O Pai costumava falar: “Meu sonho é morder uma maçã”. Hoje, graças a Deus, ele pode morder a comida que quiser.
Naquela época, meu segundo objetivo também foi alcançado. A gente se mudou para um apartamento em cima de uma casa lotérica bem ao lado do estádio do Palmeiras. Eu podia olhar pela janela e ver meu sonho todas as manhãs quando acordava e todas as noites quando ia dormir. Era lindo. Opa, espera, que eu esqueci de contar a história completa do Pai…
A Mãe é nossa rocha e o Pai, nosso “pacero”. Sempre foi assim. Mas tem muito mais da história dele que você não sabe. Se você acha que foi difícil pra mim, você está errado. Eu nasci em berço de ouro comparado ao Pai. Quando era menino, nosso avô não esteve tão perto dele. O futebol também era uma saída para o nosso Pai. Quando ele tinha 15 anos, ele saiu de casa e foi andando pela estrada de Brasília a São Paulo. Andando! Durante boa parte do caminho… É muito longe, irmão. E ele nem contou pra Mãe dele! Nessa viagem, ele carregou a vida inteira nas costas: um par de chuteiras, duas garrafas de 2 litros – uma com água, outra com água misturada com Tang – e alguns pães. O plano dele era fazer testes em todos os clubes da cidade. Isso demorou uma semana inteira, ele andava e pegava carona na estrada.
Quando finalmente chegou a São Paulo, não tinha dinheiro, e nem para onde ir, então, ele ficava andando e batendo nas portas dos clubes perguntando quando aconteceriam as peneiras. Alguém do São Paulo FC viu que ele estava passando dificuldades e deu pra ele um pouco de comida da cantina. Numa das noites mais frias, uma senhora de uma instituição de caridade viu que ele estava dormindo debaixo de uma árvore em um parque e chamou o Pai para ficar em um abrigo. O lugar estava tão aconchegante, e já fazia mais de três noites que ele não deitava em uma cama, que o Pai dormiu demais e perdeu a peneira do Nacional Atlético Clube no dia seguinte.
Você pode imaginar o tanto que o Pai devia estar cansado? Você pode imaginar passar uma semana caminhando para ir atrás do seu sonho, para fazer uma peneira… e você acaba perdendo a oportunidade? Quando ele me contou, irmão, eu não sabia se ria ou chorava.
Teve outra noite em que estava chovendo e o Pai não tinha para onde ir, então, ele foi andando até o estádio do Palmeiras e dormiu embaixo do teto da bilheteria. Ele não conseguiu realizar seu sonho, mas deu tudo de si.
Quando voltou para Brasília, jogou na várzea para se sustentar. Você sabe como é a várzea, né? Não tem salário, irmão. É só paixão. Eles jogam por uma “ajuda de custo”, quando dá tudo certo. O Pai jogava pela conta de luz ou por um saco de arroz. Quando era criança, eu acompanhava o Pai em todas as partidas e ficava chutando a bola no cantinho do campo. Na hora do intervalo, eles ficavam tocando música e todo mundo festejava, eu entrava em campo pra brincar e ganhar umas apostas. (Cara, por que você acha que eu fico cantando sozinho quando estou jogando?)
O pai me via depois dos jogos e perguntava: “Endrick, como é que você conseguiu esta Coca-Cola, parceiro? Você não está pegando de alguém, está?”. Eu respondia: “Não, não, eu acertei um chute na trave e o Dudu ali ganhou 10 reais. Ele me comprou uma Coca-Cola porque eu ajudei ele a ganhar uma aposta. Se eu acertar de novo, ele vai me comprar um espetinho de carne!”
Esse era o meu corre! A Mãe dizia que eu chegava em casa com as pernas todas cinza depois de brincar no barro por tanto tempo. Você sabe como é a terra cinzenta do Brasil. Espero que você ainda se lembre disso. A Mãe tinha que me lavar como se eu fosse um pet. Assim que ficava limpo, pssshhewww — eu já saía como um foguete pra brincar. (Lembra do que eu disse? Nasci no futebol.). Futebol não foi apenas o meu sonho, mas o sonho do nosso Pai, do nosso avô, o sonho de toda família.
Você acha que quando papai estava dormindo embaixo da bilheteria do estádio do Palmeiras, ele teria sonhado que seu filho jogaria lá um dia?
Quando eu tinha 15 anos e me tornei profissional no Palmeiras, posso dizer honestamente que alcancei tudo que eu sempre quis na minha vida, graças a Deus. Consegui comprar uma casa pra mamãe e tirar nossas duas avós de Chaparral, que era perigoso. Depois daquela conversa que tive com o Pai no sofá, eu sabia que agora tinha alcançado meu primeiro objetivo: ajudar minha família a ter uma vida melhor.
Que momento! Mas também… cara… que alívio. Quando você era bebezinho, já vivíamos uma vida muito diferente, e a nossa vida vai continuar mudando nos próximos anos.
Dentro de alguns meses partirei para a Espanha e você vem comigo. Real Madrid…. Esse era o meu terceiro objetivo e foi o único que nunca ousei escrever. Quando era pequeno, eu não tinha celular ou qualquer coisa, então eu costumava pegar emprestado o computador da mamãe e assistir aos melhores momentos dos jogos do Real Madrid, desde os 7 ou 8 anos. Eu sei que você é muito jovem para lembrar desses nomes, mas eu estava obcecado com aquela equipe de 2013-14 com Cristiano, Modric e Benzema. Essa foi minha porta de entrada na história do clube. Comecei a entrar no YouTube e aprender sobre o Galácticos e depois cada vez mais fundo — Puskás, Di Stéfano… Pode acreditar, em Madri, você vai ouvir falar mais sobre esses craques.
Você pode aprender qualquer coisa no YouTube. É mais ou menos como uma universidade. Mais do que ninguém, eu assisti Cristiano. Não apenas os melhores momentos, mas também o quanto ele se dedicou e o que outros diziam sobre sua mentalidade. Com ele, aprendi que o trabalho duro é até mais importante que o talento.
Espero que possa conhecer o Cristiano um dia. Enquanto escrevo estas palavras, isso ainda não aconteceu. Mas o filho dele me segue no Instagram, então, espero que no momento em que você estiver lendo este texto, eu já tenha conseguido apertar a mão dele. Se Deus quiser, vai correr tudo bem no Real Madrid e na minha carreira, e o Cristiano vai me seguir! Talvez você e eu! Hahaha. Conhecer Cristiano Ronaldo. Esse é o objetivo número 4. A meta número 5 é que o resto desta temporada com o Palmeiras termine bem, com o nosso time vencendo o Paulistão mais uma vez.
O objetivo número 6… Na verdade, tenho uma história engraçada sobre isso. Quando fui visitar o Real Madrid pela primeira vez há alguns meses, muitas coisas incríveis aconteceram. Quando conhecemos Florentino Pérez, ele olhou nos olhos do Pai e disse: “O Real Madrid será o único clube que tratará Endrick como um filho.” Isso foi muito impactante pro Pai.
Conheci o Bellingham, aquele cara muito bom que sempre marca para mim no PlayStation, e todo mundo o chama de Jude, então eu disse a ele: “Ei, Jude, no meu próximo gol, vou fazer sua comemoração.” Quando marquei, mandei o vídeo para ele no Instagram e ele repostou.
Até recebi alguns conselhos do Ronaldo Fenômeno. Tudo aconteceu muito rápido, como se eu estivesse em um sonho. Mas o que mais me lembro é quando entrei no vestiário e o Modric falou comigo. A camisa 10 estava pendurada e ele apontou para o assento ao lado ele e disse: “Número 9 e Número 10. Quem sabe… na próxima temporada, talvez você se sente do meu lado”.
Isso mexeu comigo, de verdade. Eu pensei: Cara, se o Modric acredita que sou digno de usar a número 9, então devo ser pra valer mesmo! Ainda não cheguei a Madri, por isso não sei, mas espero um dia usar a 9 do Real Madrid. E quanto ao objetivo número 7? Quero minha própria casa em Madri com um escritório, pra poder colocar minha lousa bem grande com meus objetivos! Hahaha. A Mãe ainda não me deixa colocar uma lousa na casa dela!
“Não tem espaço pra isso, Endrick! Simples assim!” Você sabe como ela é. Temos que ouvir e respeitar. Na verdade, eu tinha outro objetivo, mas não vou numerar aqui, porque já foi alcançado. Esse objetivo é que você viva a vida que desejar, seja ela qual for.
Durante três gerações, ou talvez mais, a nossa família teve que perseguir o sonho do futebol, tentado mudar nossas condições. Mas agora você pode fazer o que você quiser. Você pode ser médico ou advogado, ou talvez, já que vamos para a Espanha, no país de Nadal e Alcaraz, você pode se tornar um tenista profissional. Você já está correndo atrás da bola, como eu. Então você pode ser jogador de futebol, se quiser. Mas você não tem que ser. Não há mais estresse, graças a Deus, graças à Mãe e ao Pai, e graças ao futebol.
Quero que você aproveite sua vida como quiser, irmão. É o meu presente pra você. E agora é aqui que esta carta termina e o futuro começa. Veja bem, as pessoas me perguntam o tempo todo sobre o Real Madrid e a Seleção Brasileira e como acho que será minha carreira. Mas você sabe qual é a real? Eu simplesmente não sei.
Na vida, não sabemos como será o dia de amanhã. Não sabemos se teremos um amanhã. Tudo o que podemos fazer é agradecer a Deus por tudo que Ele nos deu. Espero que você entenda, irmão. A vida que estamos vivendo agora não surgiu do nada. Foi conquistada, com muito trabalho e muitas lágrimas. Mamãe sempre diz que um único erro pode fazer com que tudo desmorone, e ela está certa.
No momento em que esquecemos de onde viemos, corremos o risco de nos perdermos. É por isso que estou te dando como presente a história da nossa família. A Mãe comendo a broinha de milho velha. O Pai dormindo embaixo da bilheteria. A Mãe chorando no banheiro. O Pai chorando no sofá. Que você sempre guarde isso em seu coração. Te amo, Mano. Do fundo do meu coração, Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.
Endrick, jogador do Palmeiras que tem se destacado também na seleção brasileira, vem chamando atenção do mundo pelo futebol, inclusive sendo previamente contratado pelo Real Madrid assim que completar 18 anos de idade.
O atleta, que disputa neste domingo a final do campeonato Paulista, contra o Santos, a partir das 18h, emocionou muita gente também fora de campo ao dedicar uma carta ao irmão mais novo, Noah, de 4 anos.
Leia a carta de Endrick para o irmão na íntegra
Querido Noah, Eu te amo. Esta é a primeira coisa, acima de tudo. Desde o primeiro dia, sinto que temos uma ligação muito especial. Eu nunca te contei isso, mas, no dia do seu nascimento, parece que você só estava esperando eu marcar um gol para nascer.
É verdade, irmão. Eu estava jogando uma partida importante na época, tinha apenas 13 anos, e você não queria sair da barriga da mamãe. O relógio fazia tic-tac-tic-tac sem parar, e mamãe e papai se perguntavam o que você estava esperando. Então, de repente, o Pai recebeu uma ligação de seu amigo que estava no jogo.
Ele disse: “Douglas!! Douglas!! Endrick acabou de fazer um gol!!”. E então, naquele exato momento, tudo que se ouviu no quarto do hospital foi Wwwwwwaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!! Você finalmente saiu para comemorar comigo. Quando cheguei ao hospital, te dei um presente de aniversário. Eu não tinha dinheiro para comprar um brinquedo, mas levei pra você a bola de ouro que ganhei do torneio.
Viu só? Na nossa família, não nascemos em berço de ouro. Nascemos no berço do futebol. Não sei quando você vai ler esta carta, mas agora você tem quatro anos, e nossas vidas estão mudando muito rápido. Nos próximos meses, vou para a Espanha jogar pelo Real Madrid — sim, o time que eu sempre escolho no PlayStation quando você me assiste jogando. Eu sei que o mundo vai querer saber sobre a história da nossa família. E é uma história maluca, irmão! Então esta é minha chance de te contar como tudo realmente aconteceu, e com a Mãe e o Pai aqui para me ajudar.
Como você sabe, na nossa família tudo sempre começa e termina com a bola. A Mãe diz que, quando eu era um bebê, nunca fiz vvvrrooooom!!! como você. Se me dessem um brinquedo, eu ficaria com ele cinco segundos e depois colocava de volta na caixa. Tudo que eu queria era “bola, bola, bola”.
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Uma bola de fita. Uma bola de meia. Uma bola de basquete. Pouco importava. Se fosse redonda ou até mesmo quadrada, eu queria mesmo é sair chutando. Quando ganhei a bola da Copa de 2014, a Brazuca, do time do pai na várzea, eu ficava só olhando as cores, como se fosse uma pintura. Eu dormia abraçado com ela! Está no sangue, irmão.
Pode perguntar pra Mãe como eu me apresentava pras pessoas. “E qual é o seu nome, moleque?” “Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.” As pessoas riam de mim, tá ligado? “Que criança mais fofa”. Mas, irmão, eu tava falando sério. Eu tinha certeza que conseguiria, e a nossa Mãe ainda chora quando se lembra disso. Ela sempre disse que as palavras têm poder.
Naquela época, a gente não morava em um apartamento chique como agora. Não tinha geladeira cheia dos iogurtes que você tanto ama. A gente vivia no alto do morro, num lugar chamado Vila Guaíra, e a vida era diferente. Você vai ouvir todo tipo de história sobre a gente vindo de outras pessoas nos próximos anos, e até vão dizer que tudo foi “dor e sofrimento”. Mas a verdade é que eu tive uma infância incrível, graças a Deus, e graças a tudo que a Mãe e o Pai fizeram por mim. E graças ao futebol, claro.
Acho que nunca te contei isso, mas quando eu tinha mais ou menos a sua idade, nossa rua ficava nesse morro. A gente jogava futebol lá com todo o pessoal do bairro, e um dos motivos que fazia a gente ser tão bom é que, se a bola rolasse ladeira abaixo, quem perdia o gol tinha de ir até a favela lá embaixo para buscar. Tipo, o moleque corria, passava por um jogador e, se perdesse o gol, tinha que correr ainda mais pra pegar a bola antes de ela chegar lá embaixo. Era cansativo, mas as regras na rua são muito claras. Quem chuta, busca!
Tenho muitas saudades daquela época, quando eu era apenas uma criança e o futebol, só um jogo. Quando os amigos ficavam sentados, batendo papo… É resenha que fala, né? Eu realmente gostaria que a gente pudesse ter vivido esse tempo juntos, irmão. Quando penso nisso, fico feliz e triste ao mesmo tempo. Boas lembranças de um tempo que eu sei que não vai voltar, sabe? Até mesmo as lembranças ruins, às vezes, são doces.
Quando você crescer, vai ouvir a história da “conversa no sofá”. Tem um monte de gente que já fala sobre isso no Brasil, mas eles não entenderam a história. Eles falam que éramos pobres e que não tínhamos o que comer, mas isso não é verdade. Eles não conhecem nossa Mãe. Como ela mesmo diz: “Eu sou muito mulher pra deixar comida faltar pros meus filhos”.
A verdade é que aquele dia no sofá eu vi nosso pai chorar. Acho que foi a primeira vez na minha vida que entendi que a nossa situação não era fácil. Nós sempre tivemos o essencial na nossa mesa. Mas nem sempre tínhamos o suficiente para tudo que queríamos. Entende a diferença?
A gente sempre vivia no limite. O Pai conta que eu sentei no sofá e disse a ele: “Não se preocupe. Com o futebol, vou dar uma vida melhor pra gente.” Antes daquele dia, eu era só uma criança e o futebol, apenas um jogo. Depois daquele dia, o futebol se transformou no caminho para uma vida melhor.
Algumas semanas depois, fui pra São Paulo para treinar na Academia do Palmeiras e anotei meu primeiro objetivo: “Melhorar a situação da nossa família”. Colocar objetivos é algo importante da minha vida. É a minha maneira de conversar com Deus. Quando fui para o Palmeiras, sabia que faria pelo menos 2 a 3 refeições por dia na escola e no treinamento. Mas para a Mãe, infelizmente, não foi tão simples…
Ela deixou sua vida pra trás para apoiar meu sonho em São Paulo. O clube só tinha espaço para mim, mas ela disse que não tinha como eu ir sem ela. O Pai ficou em Brasilia, trabalhando para mandar dinheiro pra gente, enquanto ela foi morar comigo em uma casinha junto com alguns dos meus companheiros. Todos debaixo do mesmo teto. Mas quando a gente ia treinar, a Mãe não tinha com quem conversar. Não tinha TV nem internet em casa, então, ela levava a Bíblia para o parque, sentava e falava sozinha com Deus. A única coisa que ela possuía na casa era uma cadeira. Ela deixava a bolsa em cima dela e, quando a gente ia pra cama, ela dormia um pouco no colchão que ficava no chão.
Eu sei que é difícil para você imaginar a mamãe dormindo no chão, mas esta é a verdade. Foi assim que aconteceu. Às vezes, a Mãe estava literalmente contando os últimos trocados. O Pai continuava mandando dinheiro, mas naquela época não tinha o Pix, então, o dinheiro demorava um ou dois dias para cair na conta. Nos dias bons, quando o dinheiro rendia, a Mãe cozinhava linguiça para os outros meninos. Mas na maioria dos dias, só dava pra gente mesmo comer, e ela se sentia muito culpada fazendo comida em casa, porque os meninos sentiam o cheiro da carne cozinhando, e eles perguntavam se tinha alguma pra eles também….. O que ela poderia dizer? Não sobrava nada.
Na verdade, foi tão doloroso que ela até parou de cozinhar. Lembro que teve momentos em que eu estava meio com fome, pouco antes de dormir, sabe? Tipo, eu podia comer. Então, eu perguntava pra Mãe se tinha alguma coisa e ela dizia: “Vai dormir, Endrick, que a fome passa”.
Outras vezes, quando a gente estava desesperado por dinheiro, a Mãe conseguia pedir emprestado arroz ou mesmo algum trocado. Mas um dia, irmão… Ela não tinha mais para quem pedir. Estava sem dinheiro e sem ter a quem recorrer. Ela ligou para o Pai e disse: “Douglas, estou com fome… Não sei o que fazer”.
O Pai mandou 50 reais, mas o dinheiro só ficaria disponível no dia seguinte. Ela se ajoelhou e orou a Deus pedindo ajuda. Então, ela pegou a bolsa na cadeira e começou a revirar, cavando até o fundo. Ela achou 2 reais, irmão. Trocados perdidos. Um presente de Deus.
Ela foi ao supermercado e comprou broinha de milho de dois dias. E se você perguntar a ela agora, ela vai te dizer que o sabor estava maravilhoso. A Mãe fala que a fome traz uma sensação muito estranha. Faz com que até broinha de milho de dois dias tenha o melhor gosto do mundo.
Para ser sincero, gostaria de não ter que te contar isso, porque a fome não é uma coisa boa. Espero que você nunca experimente isso, como mamãe passou. Mas é uma parte importante da nossa história. Na próxima vez que você encontrar com ela, dá um abraço forte e agradeça, porque sem os sacrifícios dela não teríamos a vida que temos hoje.
Na verdade, nem mesmo eu conhecia essas histórias até bem pouco tempo atrás, porque a Mãe sempre escondia sua dor para proteger meu sonho. Eu nunca vi a Mãe chorar. Ela costumava entrar no banheiro para eu não perceber. Mas a Mãe telefonava para o Pai muitas vezes, dizendo que não aguentava mais, que queria voltar pra casa, só que aí eu voltava dos treinos contando histórias sobre o que aconteceu naquele dia, e os gols que marcamos… E ela via meus olhos brilhando. Então ela ficou. Por mim. Pela nossa família.
Essa é a nossa Mãe, sempre fazendo o que é necessário. Às vezes, ela é a sargento, aquela que briga e grita, dizendo as coisas que precisamos, mas não queremos ouvir. E outras vezes ela nos abraça e prepara as melhores omeletes do planeta. O que quer que ela faça, lembre-se de que é tudo por um motivo simples. Ela sempre quer o que é melhor para nós.
O Pai também se sacrificou muito. Depois de alguns meses, ele veio para São Paulo nos apoiar e foi até o Palmeiras, pedindo ao clube um emprego onde fosse possível. Eles só tinham uma vaga. O Pai começou a trabalhar na equipe de limpeza, dentro do estádio. Ele sempre sonhou em estar em um ambiente de vestiário quando era menino, então, ele ia trabalhar com um sorriso no rosto. Ele ficou lá por três anos, primeiro catando lixo no estádio e depois sendo promovido para limpar o vestiário do time titular. Ele dizia para os jogadores que um dia seu filho jogaria com eles.
Certo dia, o goleiro Jailson percebeu que o Pai estava ficando cada vez mais magro. No refeitório, a equipe de limpeza e o pessoal comiam com os jogadores, e ele viu que o Pai estava apenas tomando sopa. Então, ele colocou o braço em volta do Pai e disse: “Ei, Douglas, me dá seu telefone que eu quero ligar para sua esposa”. Daí o Pai falou: “Minha esposa? Não é assim não, Jailson! O que você quer com minha esposa???”. Jailson, então, disse: “Não, não, quero que ela me conte o que está acontecendo com você, que nunca come nada. Você está bem?”.
O Pai ficou com vergonha de explicar o que estava acontecendo, então, ligou para a mamãe, e ela contou para o Jailson o que realmente estava acontecendo. História real. Como o Pai queimou a mão quando era criança em um churrasco, e a coisa foi tão séria que ele quase perdeu a mão. Os médicos deram remédios fortes para combater a infecção, e isso enfraqueceu seus dentes. Na época em que ele trabalhava no Palmeiras, todos os dentes estavam caindo. Ele só podia tomar sopa.
Então o Jailson saiu fazendo uma vaquinha com todos os jogadores e eles surpreenderam o papai com dinheiro para ele consertar os dentes. Deus trabalha de maneiras incríveis, irmão. O Pai costumava falar: “Meu sonho é morder uma maçã”. Hoje, graças a Deus, ele pode morder a comida que quiser.
Naquela época, meu segundo objetivo também foi alcançado. A gente se mudou para um apartamento em cima de uma casa lotérica bem ao lado do estádio do Palmeiras. Eu podia olhar pela janela e ver meu sonho todas as manhãs quando acordava e todas as noites quando ia dormir. Era lindo. Opa, espera, que eu esqueci de contar a história completa do Pai…
A Mãe é nossa rocha e o Pai, nosso “pacero”. Sempre foi assim. Mas tem muito mais da história dele que você não sabe. Se você acha que foi difícil pra mim, você está errado. Eu nasci em berço de ouro comparado ao Pai. Quando era menino, nosso avô não esteve tão perto dele. O futebol também era uma saída para o nosso Pai. Quando ele tinha 15 anos, ele saiu de casa e foi andando pela estrada de Brasília a São Paulo. Andando! Durante boa parte do caminho… É muito longe, irmão. E ele nem contou pra Mãe dele! Nessa viagem, ele carregou a vida inteira nas costas: um par de chuteiras, duas garrafas de 2 litros – uma com água, outra com água misturada com Tang – e alguns pães. O plano dele era fazer testes em todos os clubes da cidade. Isso demorou uma semana inteira, ele andava e pegava carona na estrada.
Quando finalmente chegou a São Paulo, não tinha dinheiro, e nem para onde ir, então, ele ficava andando e batendo nas portas dos clubes perguntando quando aconteceriam as peneiras. Alguém do São Paulo FC viu que ele estava passando dificuldades e deu pra ele um pouco de comida da cantina. Numa das noites mais frias, uma senhora de uma instituição de caridade viu que ele estava dormindo debaixo de uma árvore em um parque e chamou o Pai para ficar em um abrigo. O lugar estava tão aconchegante, e já fazia mais de três noites que ele não deitava em uma cama, que o Pai dormiu demais e perdeu a peneira do Nacional Atlético Clube no dia seguinte.
Você pode imaginar o tanto que o Pai devia estar cansado? Você pode imaginar passar uma semana caminhando para ir atrás do seu sonho, para fazer uma peneira… e você acaba perdendo a oportunidade? Quando ele me contou, irmão, eu não sabia se ria ou chorava.
Teve outra noite em que estava chovendo e o Pai não tinha para onde ir, então, ele foi andando até o estádio do Palmeiras e dormiu embaixo do teto da bilheteria. Ele não conseguiu realizar seu sonho, mas deu tudo de si.
Quando voltou para Brasília, jogou na várzea para se sustentar. Você sabe como é a várzea, né? Não tem salário, irmão. É só paixão. Eles jogam por uma “ajuda de custo”, quando dá tudo certo. O Pai jogava pela conta de luz ou por um saco de arroz. Quando era criança, eu acompanhava o Pai em todas as partidas e ficava chutando a bola no cantinho do campo. Na hora do intervalo, eles ficavam tocando música e todo mundo festejava, eu entrava em campo pra brincar e ganhar umas apostas. (Cara, por que você acha que eu fico cantando sozinho quando estou jogando?)
O pai me via depois dos jogos e perguntava: “Endrick, como é que você conseguiu esta Coca-Cola, parceiro? Você não está pegando de alguém, está?”. Eu respondia: “Não, não, eu acertei um chute na trave e o Dudu ali ganhou 10 reais. Ele me comprou uma Coca-Cola porque eu ajudei ele a ganhar uma aposta. Se eu acertar de novo, ele vai me comprar um espetinho de carne!”
Esse era o meu corre! A Mãe dizia que eu chegava em casa com as pernas todas cinza depois de brincar no barro por tanto tempo. Você sabe como é a terra cinzenta do Brasil. Espero que você ainda se lembre disso. A Mãe tinha que me lavar como se eu fosse um pet. Assim que ficava limpo, pssshhewww — eu já saía como um foguete pra brincar. (Lembra do que eu disse? Nasci no futebol.). Futebol não foi apenas o meu sonho, mas o sonho do nosso Pai, do nosso avô, o sonho de toda família.
Você acha que quando papai estava dormindo embaixo da bilheteria do estádio do Palmeiras, ele teria sonhado que seu filho jogaria lá um dia?
Quando eu tinha 15 anos e me tornei profissional no Palmeiras, posso dizer honestamente que alcancei tudo que eu sempre quis na minha vida, graças a Deus. Consegui comprar uma casa pra mamãe e tirar nossas duas avós de Chaparral, que era perigoso. Depois daquela conversa que tive com o Pai no sofá, eu sabia que agora tinha alcançado meu primeiro objetivo: ajudar minha família a ter uma vida melhor.
Que momento! Mas também… cara… que alívio. Quando você era bebezinho, já vivíamos uma vida muito diferente, e a nossa vida vai continuar mudando nos próximos anos.
Dentro de alguns meses partirei para a Espanha e você vem comigo. Real Madrid…. Esse era o meu terceiro objetivo e foi o único que nunca ousei escrever. Quando era pequeno, eu não tinha celular ou qualquer coisa, então eu costumava pegar emprestado o computador da mamãe e assistir aos melhores momentos dos jogos do Real Madrid, desde os 7 ou 8 anos. Eu sei que você é muito jovem para lembrar desses nomes, mas eu estava obcecado com aquela equipe de 2013-14 com Cristiano, Modric e Benzema. Essa foi minha porta de entrada na história do clube. Comecei a entrar no YouTube e aprender sobre o Galácticos e depois cada vez mais fundo — Puskás, Di Stéfano… Pode acreditar, em Madri, você vai ouvir falar mais sobre esses craques.
Você pode aprender qualquer coisa no YouTube. É mais ou menos como uma universidade. Mais do que ninguém, eu assisti Cristiano. Não apenas os melhores momentos, mas também o quanto ele se dedicou e o que outros diziam sobre sua mentalidade. Com ele, aprendi que o trabalho duro é até mais importante que o talento.
Espero que possa conhecer o Cristiano um dia. Enquanto escrevo estas palavras, isso ainda não aconteceu. Mas o filho dele me segue no Instagram, então, espero que no momento em que você estiver lendo este texto, eu já tenha conseguido apertar a mão dele. Se Deus quiser, vai correr tudo bem no Real Madrid e na minha carreira, e o Cristiano vai me seguir! Talvez você e eu! Hahaha. Conhecer Cristiano Ronaldo. Esse é o objetivo número 4. A meta número 5 é que o resto desta temporada com o Palmeiras termine bem, com o nosso time vencendo o Paulistão mais uma vez.
O objetivo número 6… Na verdade, tenho uma história engraçada sobre isso. Quando fui visitar o Real Madrid pela primeira vez há alguns meses, muitas coisas incríveis aconteceram. Quando conhecemos Florentino Pérez, ele olhou nos olhos do Pai e disse: “O Real Madrid será o único clube que tratará Endrick como um filho.” Isso foi muito impactante pro Pai.
Conheci o Bellingham, aquele cara muito bom que sempre marca para mim no PlayStation, e todo mundo o chama de Jude, então eu disse a ele: “Ei, Jude, no meu próximo gol, vou fazer sua comemoração.” Quando marquei, mandei o vídeo para ele no Instagram e ele repostou.
Até recebi alguns conselhos do Ronaldo Fenômeno. Tudo aconteceu muito rápido, como se eu estivesse em um sonho. Mas o que mais me lembro é quando entrei no vestiário e o Modric falou comigo. A camisa 10 estava pendurada e ele apontou para o assento ao lado ele e disse: “Número 9 e Número 10. Quem sabe… na próxima temporada, talvez você se sente do meu lado”.
Isso mexeu comigo, de verdade. Eu pensei: Cara, se o Modric acredita que sou digno de usar a número 9, então devo ser pra valer mesmo! Ainda não cheguei a Madri, por isso não sei, mas espero um dia usar a 9 do Real Madrid. E quanto ao objetivo número 7? Quero minha própria casa em Madri com um escritório, pra poder colocar minha lousa bem grande com meus objetivos! Hahaha. A Mãe ainda não me deixa colocar uma lousa na casa dela!
“Não tem espaço pra isso, Endrick! Simples assim!” Você sabe como ela é. Temos que ouvir e respeitar. Na verdade, eu tinha outro objetivo, mas não vou numerar aqui, porque já foi alcançado. Esse objetivo é que você viva a vida que desejar, seja ela qual for.
Durante três gerações, ou talvez mais, a nossa família teve que perseguir o sonho do futebol, tentado mudar nossas condições. Mas agora você pode fazer o que você quiser. Você pode ser médico ou advogado, ou talvez, já que vamos para a Espanha, no país de Nadal e Alcaraz, você pode se tornar um tenista profissional. Você já está correndo atrás da bola, como eu. Então você pode ser jogador de futebol, se quiser. Mas você não tem que ser. Não há mais estresse, graças a Deus, graças à Mãe e ao Pai, e graças ao futebol.
Quero que você aproveite sua vida como quiser, irmão. É o meu presente pra você. E agora é aqui que esta carta termina e o futuro começa. Veja bem, as pessoas me perguntam o tempo todo sobre o Real Madrid e a Seleção Brasileira e como acho que será minha carreira. Mas você sabe qual é a real? Eu simplesmente não sei.
Na vida, não sabemos como será o dia de amanhã. Não sabemos se teremos um amanhã. Tudo o que podemos fazer é agradecer a Deus por tudo que Ele nos deu. Espero que você entenda, irmão. A vida que estamos vivendo agora não surgiu do nada. Foi conquistada, com muito trabalho e muitas lágrimas. Mamãe sempre diz que um único erro pode fazer com que tudo desmorone, e ela está certa.
No momento em que esquecemos de onde viemos, corremos o risco de nos perdermos. É por isso que estou te dando como presente a história da nossa família. A Mãe comendo a broinha de milho velha. O Pai dormindo embaixo da bilheteria. A Mãe chorando no banheiro. O Pai chorando no sofá. Que você sempre guarde isso em seu coração. Te amo, Mano. Do fundo do meu coração, Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.
Endrick, jogador do Palmeiras que tem se destacado também na seleção brasileira, vem chamando atenção do mundo pelo futebol, inclusive sendo previamente contratado pelo Real Madrid assim que completar 18 anos de idade.
O atleta, que disputa neste domingo a final do campeonato Paulista, contra o Santos, a partir das 18h, emocionou muita gente também fora de campo ao dedicar uma carta ao irmão mais novo, Noah, de 4 anos.
Leia a carta de Endrick para o irmão na íntegra
Querido Noah, Eu te amo. Esta é a primeira coisa, acima de tudo. Desde o primeiro dia, sinto que temos uma ligação muito especial. Eu nunca te contei isso, mas, no dia do seu nascimento, parece que você só estava esperando eu marcar um gol para nascer.
É verdade, irmão. Eu estava jogando uma partida importante na época, tinha apenas 13 anos, e você não queria sair da barriga da mamãe. O relógio fazia tic-tac-tic-tac sem parar, e mamãe e papai se perguntavam o que você estava esperando. Então, de repente, o Pai recebeu uma ligação de seu amigo que estava no jogo.
Ele disse: “Douglas!! Douglas!! Endrick acabou de fazer um gol!!”. E então, naquele exato momento, tudo que se ouviu no quarto do hospital foi Wwwwwwaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!! Você finalmente saiu para comemorar comigo. Quando cheguei ao hospital, te dei um presente de aniversário. Eu não tinha dinheiro para comprar um brinquedo, mas levei pra você a bola de ouro que ganhei do torneio.
Viu só? Na nossa família, não nascemos em berço de ouro. Nascemos no berço do futebol. Não sei quando você vai ler esta carta, mas agora você tem quatro anos, e nossas vidas estão mudando muito rápido. Nos próximos meses, vou para a Espanha jogar pelo Real Madrid — sim, o time que eu sempre escolho no PlayStation quando você me assiste jogando. Eu sei que o mundo vai querer saber sobre a história da nossa família. E é uma história maluca, irmão! Então esta é minha chance de te contar como tudo realmente aconteceu, e com a Mãe e o Pai aqui para me ajudar.
Como você sabe, na nossa família tudo sempre começa e termina com a bola. A Mãe diz que, quando eu era um bebê, nunca fiz vvvrrooooom!!! como você. Se me dessem um brinquedo, eu ficaria com ele cinco segundos e depois colocava de volta na caixa. Tudo que eu queria era “bola, bola, bola”.
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Uma bola de fita. Uma bola de meia. Uma bola de basquete. Pouco importava. Se fosse redonda ou até mesmo quadrada, eu queria mesmo é sair chutando. Quando ganhei a bola da Copa de 2014, a Brazuca, do time do pai na várzea, eu ficava só olhando as cores, como se fosse uma pintura. Eu dormia abraçado com ela! Está no sangue, irmão.
Pode perguntar pra Mãe como eu me apresentava pras pessoas. “E qual é o seu nome, moleque?” “Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.” As pessoas riam de mim, tá ligado? “Que criança mais fofa”. Mas, irmão, eu tava falando sério. Eu tinha certeza que conseguiria, e a nossa Mãe ainda chora quando se lembra disso. Ela sempre disse que as palavras têm poder.
Naquela época, a gente não morava em um apartamento chique como agora. Não tinha geladeira cheia dos iogurtes que você tanto ama. A gente vivia no alto do morro, num lugar chamado Vila Guaíra, e a vida era diferente. Você vai ouvir todo tipo de história sobre a gente vindo de outras pessoas nos próximos anos, e até vão dizer que tudo foi “dor e sofrimento”. Mas a verdade é que eu tive uma infância incrível, graças a Deus, e graças a tudo que a Mãe e o Pai fizeram por mim. E graças ao futebol, claro.
Acho que nunca te contei isso, mas quando eu tinha mais ou menos a sua idade, nossa rua ficava nesse morro. A gente jogava futebol lá com todo o pessoal do bairro, e um dos motivos que fazia a gente ser tão bom é que, se a bola rolasse ladeira abaixo, quem perdia o gol tinha de ir até a favela lá embaixo para buscar. Tipo, o moleque corria, passava por um jogador e, se perdesse o gol, tinha que correr ainda mais pra pegar a bola antes de ela chegar lá embaixo. Era cansativo, mas as regras na rua são muito claras. Quem chuta, busca!
Tenho muitas saudades daquela época, quando eu era apenas uma criança e o futebol, só um jogo. Quando os amigos ficavam sentados, batendo papo… É resenha que fala, né? Eu realmente gostaria que a gente pudesse ter vivido esse tempo juntos, irmão. Quando penso nisso, fico feliz e triste ao mesmo tempo. Boas lembranças de um tempo que eu sei que não vai voltar, sabe? Até mesmo as lembranças ruins, às vezes, são doces.
Quando você crescer, vai ouvir a história da “conversa no sofá”. Tem um monte de gente que já fala sobre isso no Brasil, mas eles não entenderam a história. Eles falam que éramos pobres e que não tínhamos o que comer, mas isso não é verdade. Eles não conhecem nossa Mãe. Como ela mesmo diz: “Eu sou muito mulher pra deixar comida faltar pros meus filhos”.
A verdade é que aquele dia no sofá eu vi nosso pai chorar. Acho que foi a primeira vez na minha vida que entendi que a nossa situação não era fácil. Nós sempre tivemos o essencial na nossa mesa. Mas nem sempre tínhamos o suficiente para tudo que queríamos. Entende a diferença?
A gente sempre vivia no limite. O Pai conta que eu sentei no sofá e disse a ele: “Não se preocupe. Com o futebol, vou dar uma vida melhor pra gente.” Antes daquele dia, eu era só uma criança e o futebol, apenas um jogo. Depois daquele dia, o futebol se transformou no caminho para uma vida melhor.
Algumas semanas depois, fui pra São Paulo para treinar na Academia do Palmeiras e anotei meu primeiro objetivo: “Melhorar a situação da nossa família”. Colocar objetivos é algo importante da minha vida. É a minha maneira de conversar com Deus. Quando fui para o Palmeiras, sabia que faria pelo menos 2 a 3 refeições por dia na escola e no treinamento. Mas para a Mãe, infelizmente, não foi tão simples…
Ela deixou sua vida pra trás para apoiar meu sonho em São Paulo. O clube só tinha espaço para mim, mas ela disse que não tinha como eu ir sem ela. O Pai ficou em Brasilia, trabalhando para mandar dinheiro pra gente, enquanto ela foi morar comigo em uma casinha junto com alguns dos meus companheiros. Todos debaixo do mesmo teto. Mas quando a gente ia treinar, a Mãe não tinha com quem conversar. Não tinha TV nem internet em casa, então, ela levava a Bíblia para o parque, sentava e falava sozinha com Deus. A única coisa que ela possuía na casa era uma cadeira. Ela deixava a bolsa em cima dela e, quando a gente ia pra cama, ela dormia um pouco no colchão que ficava no chão.
Eu sei que é difícil para você imaginar a mamãe dormindo no chão, mas esta é a verdade. Foi assim que aconteceu. Às vezes, a Mãe estava literalmente contando os últimos trocados. O Pai continuava mandando dinheiro, mas naquela época não tinha o Pix, então, o dinheiro demorava um ou dois dias para cair na conta. Nos dias bons, quando o dinheiro rendia, a Mãe cozinhava linguiça para os outros meninos. Mas na maioria dos dias, só dava pra gente mesmo comer, e ela se sentia muito culpada fazendo comida em casa, porque os meninos sentiam o cheiro da carne cozinhando, e eles perguntavam se tinha alguma pra eles também….. O que ela poderia dizer? Não sobrava nada.
Na verdade, foi tão doloroso que ela até parou de cozinhar. Lembro que teve momentos em que eu estava meio com fome, pouco antes de dormir, sabe? Tipo, eu podia comer. Então, eu perguntava pra Mãe se tinha alguma coisa e ela dizia: “Vai dormir, Endrick, que a fome passa”.
Outras vezes, quando a gente estava desesperado por dinheiro, a Mãe conseguia pedir emprestado arroz ou mesmo algum trocado. Mas um dia, irmão… Ela não tinha mais para quem pedir. Estava sem dinheiro e sem ter a quem recorrer. Ela ligou para o Pai e disse: “Douglas, estou com fome… Não sei o que fazer”.
O Pai mandou 50 reais, mas o dinheiro só ficaria disponível no dia seguinte. Ela se ajoelhou e orou a Deus pedindo ajuda. Então, ela pegou a bolsa na cadeira e começou a revirar, cavando até o fundo. Ela achou 2 reais, irmão. Trocados perdidos. Um presente de Deus.
Ela foi ao supermercado e comprou broinha de milho de dois dias. E se você perguntar a ela agora, ela vai te dizer que o sabor estava maravilhoso. A Mãe fala que a fome traz uma sensação muito estranha. Faz com que até broinha de milho de dois dias tenha o melhor gosto do mundo.
Para ser sincero, gostaria de não ter que te contar isso, porque a fome não é uma coisa boa. Espero que você nunca experimente isso, como mamãe passou. Mas é uma parte importante da nossa história. Na próxima vez que você encontrar com ela, dá um abraço forte e agradeça, porque sem os sacrifícios dela não teríamos a vida que temos hoje.
Na verdade, nem mesmo eu conhecia essas histórias até bem pouco tempo atrás, porque a Mãe sempre escondia sua dor para proteger meu sonho. Eu nunca vi a Mãe chorar. Ela costumava entrar no banheiro para eu não perceber. Mas a Mãe telefonava para o Pai muitas vezes, dizendo que não aguentava mais, que queria voltar pra casa, só que aí eu voltava dos treinos contando histórias sobre o que aconteceu naquele dia, e os gols que marcamos… E ela via meus olhos brilhando. Então ela ficou. Por mim. Pela nossa família.
Essa é a nossa Mãe, sempre fazendo o que é necessário. Às vezes, ela é a sargento, aquela que briga e grita, dizendo as coisas que precisamos, mas não queremos ouvir. E outras vezes ela nos abraça e prepara as melhores omeletes do planeta. O que quer que ela faça, lembre-se de que é tudo por um motivo simples. Ela sempre quer o que é melhor para nós.
O Pai também se sacrificou muito. Depois de alguns meses, ele veio para São Paulo nos apoiar e foi até o Palmeiras, pedindo ao clube um emprego onde fosse possível. Eles só tinham uma vaga. O Pai começou a trabalhar na equipe de limpeza, dentro do estádio. Ele sempre sonhou em estar em um ambiente de vestiário quando era menino, então, ele ia trabalhar com um sorriso no rosto. Ele ficou lá por três anos, primeiro catando lixo no estádio e depois sendo promovido para limpar o vestiário do time titular. Ele dizia para os jogadores que um dia seu filho jogaria com eles.
Certo dia, o goleiro Jailson percebeu que o Pai estava ficando cada vez mais magro. No refeitório, a equipe de limpeza e o pessoal comiam com os jogadores, e ele viu que o Pai estava apenas tomando sopa. Então, ele colocou o braço em volta do Pai e disse: “Ei, Douglas, me dá seu telefone que eu quero ligar para sua esposa”. Daí o Pai falou: “Minha esposa? Não é assim não, Jailson! O que você quer com minha esposa???”. Jailson, então, disse: “Não, não, quero que ela me conte o que está acontecendo com você, que nunca come nada. Você está bem?”.
O Pai ficou com vergonha de explicar o que estava acontecendo, então, ligou para a mamãe, e ela contou para o Jailson o que realmente estava acontecendo. História real. Como o Pai queimou a mão quando era criança em um churrasco, e a coisa foi tão séria que ele quase perdeu a mão. Os médicos deram remédios fortes para combater a infecção, e isso enfraqueceu seus dentes. Na época em que ele trabalhava no Palmeiras, todos os dentes estavam caindo. Ele só podia tomar sopa.
Então o Jailson saiu fazendo uma vaquinha com todos os jogadores e eles surpreenderam o papai com dinheiro para ele consertar os dentes. Deus trabalha de maneiras incríveis, irmão. O Pai costumava falar: “Meu sonho é morder uma maçã”. Hoje, graças a Deus, ele pode morder a comida que quiser.
Naquela época, meu segundo objetivo também foi alcançado. A gente se mudou para um apartamento em cima de uma casa lotérica bem ao lado do estádio do Palmeiras. Eu podia olhar pela janela e ver meu sonho todas as manhãs quando acordava e todas as noites quando ia dormir. Era lindo. Opa, espera, que eu esqueci de contar a história completa do Pai…
A Mãe é nossa rocha e o Pai, nosso “pacero”. Sempre foi assim. Mas tem muito mais da história dele que você não sabe. Se você acha que foi difícil pra mim, você está errado. Eu nasci em berço de ouro comparado ao Pai. Quando era menino, nosso avô não esteve tão perto dele. O futebol também era uma saída para o nosso Pai. Quando ele tinha 15 anos, ele saiu de casa e foi andando pela estrada de Brasília a São Paulo. Andando! Durante boa parte do caminho… É muito longe, irmão. E ele nem contou pra Mãe dele! Nessa viagem, ele carregou a vida inteira nas costas: um par de chuteiras, duas garrafas de 2 litros – uma com água, outra com água misturada com Tang – e alguns pães. O plano dele era fazer testes em todos os clubes da cidade. Isso demorou uma semana inteira, ele andava e pegava carona na estrada.
Quando finalmente chegou a São Paulo, não tinha dinheiro, e nem para onde ir, então, ele ficava andando e batendo nas portas dos clubes perguntando quando aconteceriam as peneiras. Alguém do São Paulo FC viu que ele estava passando dificuldades e deu pra ele um pouco de comida da cantina. Numa das noites mais frias, uma senhora de uma instituição de caridade viu que ele estava dormindo debaixo de uma árvore em um parque e chamou o Pai para ficar em um abrigo. O lugar estava tão aconchegante, e já fazia mais de três noites que ele não deitava em uma cama, que o Pai dormiu demais e perdeu a peneira do Nacional Atlético Clube no dia seguinte.
Você pode imaginar o tanto que o Pai devia estar cansado? Você pode imaginar passar uma semana caminhando para ir atrás do seu sonho, para fazer uma peneira… e você acaba perdendo a oportunidade? Quando ele me contou, irmão, eu não sabia se ria ou chorava.
Teve outra noite em que estava chovendo e o Pai não tinha para onde ir, então, ele foi andando até o estádio do Palmeiras e dormiu embaixo do teto da bilheteria. Ele não conseguiu realizar seu sonho, mas deu tudo de si.
Quando voltou para Brasília, jogou na várzea para se sustentar. Você sabe como é a várzea, né? Não tem salário, irmão. É só paixão. Eles jogam por uma “ajuda de custo”, quando dá tudo certo. O Pai jogava pela conta de luz ou por um saco de arroz. Quando era criança, eu acompanhava o Pai em todas as partidas e ficava chutando a bola no cantinho do campo. Na hora do intervalo, eles ficavam tocando música e todo mundo festejava, eu entrava em campo pra brincar e ganhar umas apostas. (Cara, por que você acha que eu fico cantando sozinho quando estou jogando?)
O pai me via depois dos jogos e perguntava: “Endrick, como é que você conseguiu esta Coca-Cola, parceiro? Você não está pegando de alguém, está?”. Eu respondia: “Não, não, eu acertei um chute na trave e o Dudu ali ganhou 10 reais. Ele me comprou uma Coca-Cola porque eu ajudei ele a ganhar uma aposta. Se eu acertar de novo, ele vai me comprar um espetinho de carne!”
Esse era o meu corre! A Mãe dizia que eu chegava em casa com as pernas todas cinza depois de brincar no barro por tanto tempo. Você sabe como é a terra cinzenta do Brasil. Espero que você ainda se lembre disso. A Mãe tinha que me lavar como se eu fosse um pet. Assim que ficava limpo, pssshhewww — eu já saía como um foguete pra brincar. (Lembra do que eu disse? Nasci no futebol.). Futebol não foi apenas o meu sonho, mas o sonho do nosso Pai, do nosso avô, o sonho de toda família.
Você acha que quando papai estava dormindo embaixo da bilheteria do estádio do Palmeiras, ele teria sonhado que seu filho jogaria lá um dia?
Quando eu tinha 15 anos e me tornei profissional no Palmeiras, posso dizer honestamente que alcancei tudo que eu sempre quis na minha vida, graças a Deus. Consegui comprar uma casa pra mamãe e tirar nossas duas avós de Chaparral, que era perigoso. Depois daquela conversa que tive com o Pai no sofá, eu sabia que agora tinha alcançado meu primeiro objetivo: ajudar minha família a ter uma vida melhor.
Que momento! Mas também… cara… que alívio. Quando você era bebezinho, já vivíamos uma vida muito diferente, e a nossa vida vai continuar mudando nos próximos anos.
Dentro de alguns meses partirei para a Espanha e você vem comigo. Real Madrid…. Esse era o meu terceiro objetivo e foi o único que nunca ousei escrever. Quando era pequeno, eu não tinha celular ou qualquer coisa, então eu costumava pegar emprestado o computador da mamãe e assistir aos melhores momentos dos jogos do Real Madrid, desde os 7 ou 8 anos. Eu sei que você é muito jovem para lembrar desses nomes, mas eu estava obcecado com aquela equipe de 2013-14 com Cristiano, Modric e Benzema. Essa foi minha porta de entrada na história do clube. Comecei a entrar no YouTube e aprender sobre o Galácticos e depois cada vez mais fundo — Puskás, Di Stéfano… Pode acreditar, em Madri, você vai ouvir falar mais sobre esses craques.
Você pode aprender qualquer coisa no YouTube. É mais ou menos como uma universidade. Mais do que ninguém, eu assisti Cristiano. Não apenas os melhores momentos, mas também o quanto ele se dedicou e o que outros diziam sobre sua mentalidade. Com ele, aprendi que o trabalho duro é até mais importante que o talento.
Espero que possa conhecer o Cristiano um dia. Enquanto escrevo estas palavras, isso ainda não aconteceu. Mas o filho dele me segue no Instagram, então, espero que no momento em que você estiver lendo este texto, eu já tenha conseguido apertar a mão dele. Se Deus quiser, vai correr tudo bem no Real Madrid e na minha carreira, e o Cristiano vai me seguir! Talvez você e eu! Hahaha. Conhecer Cristiano Ronaldo. Esse é o objetivo número 4. A meta número 5 é que o resto desta temporada com o Palmeiras termine bem, com o nosso time vencendo o Paulistão mais uma vez.
O objetivo número 6… Na verdade, tenho uma história engraçada sobre isso. Quando fui visitar o Real Madrid pela primeira vez há alguns meses, muitas coisas incríveis aconteceram. Quando conhecemos Florentino Pérez, ele olhou nos olhos do Pai e disse: “O Real Madrid será o único clube que tratará Endrick como um filho.” Isso foi muito impactante pro Pai.
Conheci o Bellingham, aquele cara muito bom que sempre marca para mim no PlayStation, e todo mundo o chama de Jude, então eu disse a ele: “Ei, Jude, no meu próximo gol, vou fazer sua comemoração.” Quando marquei, mandei o vídeo para ele no Instagram e ele repostou.
Até recebi alguns conselhos do Ronaldo Fenômeno. Tudo aconteceu muito rápido, como se eu estivesse em um sonho. Mas o que mais me lembro é quando entrei no vestiário e o Modric falou comigo. A camisa 10 estava pendurada e ele apontou para o assento ao lado ele e disse: “Número 9 e Número 10. Quem sabe… na próxima temporada, talvez você se sente do meu lado”.
Isso mexeu comigo, de verdade. Eu pensei: Cara, se o Modric acredita que sou digno de usar a número 9, então devo ser pra valer mesmo! Ainda não cheguei a Madri, por isso não sei, mas espero um dia usar a 9 do Real Madrid. E quanto ao objetivo número 7? Quero minha própria casa em Madri com um escritório, pra poder colocar minha lousa bem grande com meus objetivos! Hahaha. A Mãe ainda não me deixa colocar uma lousa na casa dela!
“Não tem espaço pra isso, Endrick! Simples assim!” Você sabe como ela é. Temos que ouvir e respeitar. Na verdade, eu tinha outro objetivo, mas não vou numerar aqui, porque já foi alcançado. Esse objetivo é que você viva a vida que desejar, seja ela qual for.
Durante três gerações, ou talvez mais, a nossa família teve que perseguir o sonho do futebol, tentado mudar nossas condições. Mas agora você pode fazer o que você quiser. Você pode ser médico ou advogado, ou talvez, já que vamos para a Espanha, no país de Nadal e Alcaraz, você pode se tornar um tenista profissional. Você já está correndo atrás da bola, como eu. Então você pode ser jogador de futebol, se quiser. Mas você não tem que ser. Não há mais estresse, graças a Deus, graças à Mãe e ao Pai, e graças ao futebol.
Quero que você aproveite sua vida como quiser, irmão. É o meu presente pra você. E agora é aqui que esta carta termina e o futuro começa. Veja bem, as pessoas me perguntam o tempo todo sobre o Real Madrid e a Seleção Brasileira e como acho que será minha carreira. Mas você sabe qual é a real? Eu simplesmente não sei.
Na vida, não sabemos como será o dia de amanhã. Não sabemos se teremos um amanhã. Tudo o que podemos fazer é agradecer a Deus por tudo que Ele nos deu. Espero que você entenda, irmão. A vida que estamos vivendo agora não surgiu do nada. Foi conquistada, com muito trabalho e muitas lágrimas. Mamãe sempre diz que um único erro pode fazer com que tudo desmorone, e ela está certa.
No momento em que esquecemos de onde viemos, corremos o risco de nos perdermos. É por isso que estou te dando como presente a história da nossa família. A Mãe comendo a broinha de milho velha. O Pai dormindo embaixo da bilheteria. A Mãe chorando no banheiro. O Pai chorando no sofá. Que você sempre guarde isso em seu coração. Te amo, Mano. Do fundo do meu coração, Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.
Endrick, jogador do Palmeiras que tem se destacado também na seleção brasileira, vem chamando atenção do mundo pelo futebol, inclusive sendo previamente contratado pelo Real Madrid assim que completar 18 anos de idade.
O atleta, que disputa neste domingo a final do campeonato Paulista, contra o Santos, a partir das 18h, emocionou muita gente também fora de campo ao dedicar uma carta ao irmão mais novo, Noah, de 4 anos.
Leia a carta de Endrick para o irmão na íntegra
Querido Noah, Eu te amo. Esta é a primeira coisa, acima de tudo. Desde o primeiro dia, sinto que temos uma ligação muito especial. Eu nunca te contei isso, mas, no dia do seu nascimento, parece que você só estava esperando eu marcar um gol para nascer.
É verdade, irmão. Eu estava jogando uma partida importante na época, tinha apenas 13 anos, e você não queria sair da barriga da mamãe. O relógio fazia tic-tac-tic-tac sem parar, e mamãe e papai se perguntavam o que você estava esperando. Então, de repente, o Pai recebeu uma ligação de seu amigo que estava no jogo.
Ele disse: “Douglas!! Douglas!! Endrick acabou de fazer um gol!!”. E então, naquele exato momento, tudo que se ouviu no quarto do hospital foi Wwwwwwaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!! Você finalmente saiu para comemorar comigo. Quando cheguei ao hospital, te dei um presente de aniversário. Eu não tinha dinheiro para comprar um brinquedo, mas levei pra você a bola de ouro que ganhei do torneio.
Viu só? Na nossa família, não nascemos em berço de ouro. Nascemos no berço do futebol. Não sei quando você vai ler esta carta, mas agora você tem quatro anos, e nossas vidas estão mudando muito rápido. Nos próximos meses, vou para a Espanha jogar pelo Real Madrid — sim, o time que eu sempre escolho no PlayStation quando você me assiste jogando. Eu sei que o mundo vai querer saber sobre a história da nossa família. E é uma história maluca, irmão! Então esta é minha chance de te contar como tudo realmente aconteceu, e com a Mãe e o Pai aqui para me ajudar.
Como você sabe, na nossa família tudo sempre começa e termina com a bola. A Mãe diz que, quando eu era um bebê, nunca fiz vvvrrooooom!!! como você. Se me dessem um brinquedo, eu ficaria com ele cinco segundos e depois colocava de volta na caixa. Tudo que eu queria era “bola, bola, bola”.
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Uma bola de fita. Uma bola de meia. Uma bola de basquete. Pouco importava. Se fosse redonda ou até mesmo quadrada, eu queria mesmo é sair chutando. Quando ganhei a bola da Copa de 2014, a Brazuca, do time do pai na várzea, eu ficava só olhando as cores, como se fosse uma pintura. Eu dormia abraçado com ela! Está no sangue, irmão.
Pode perguntar pra Mãe como eu me apresentava pras pessoas. “E qual é o seu nome, moleque?” “Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.” As pessoas riam de mim, tá ligado? “Que criança mais fofa”. Mas, irmão, eu tava falando sério. Eu tinha certeza que conseguiria, e a nossa Mãe ainda chora quando se lembra disso. Ela sempre disse que as palavras têm poder.
Naquela época, a gente não morava em um apartamento chique como agora. Não tinha geladeira cheia dos iogurtes que você tanto ama. A gente vivia no alto do morro, num lugar chamado Vila Guaíra, e a vida era diferente. Você vai ouvir todo tipo de história sobre a gente vindo de outras pessoas nos próximos anos, e até vão dizer que tudo foi “dor e sofrimento”. Mas a verdade é que eu tive uma infância incrível, graças a Deus, e graças a tudo que a Mãe e o Pai fizeram por mim. E graças ao futebol, claro.
Acho que nunca te contei isso, mas quando eu tinha mais ou menos a sua idade, nossa rua ficava nesse morro. A gente jogava futebol lá com todo o pessoal do bairro, e um dos motivos que fazia a gente ser tão bom é que, se a bola rolasse ladeira abaixo, quem perdia o gol tinha de ir até a favela lá embaixo para buscar. Tipo, o moleque corria, passava por um jogador e, se perdesse o gol, tinha que correr ainda mais pra pegar a bola antes de ela chegar lá embaixo. Era cansativo, mas as regras na rua são muito claras. Quem chuta, busca!
Tenho muitas saudades daquela época, quando eu era apenas uma criança e o futebol, só um jogo. Quando os amigos ficavam sentados, batendo papo… É resenha que fala, né? Eu realmente gostaria que a gente pudesse ter vivido esse tempo juntos, irmão. Quando penso nisso, fico feliz e triste ao mesmo tempo. Boas lembranças de um tempo que eu sei que não vai voltar, sabe? Até mesmo as lembranças ruins, às vezes, são doces.
Quando você crescer, vai ouvir a história da “conversa no sofá”. Tem um monte de gente que já fala sobre isso no Brasil, mas eles não entenderam a história. Eles falam que éramos pobres e que não tínhamos o que comer, mas isso não é verdade. Eles não conhecem nossa Mãe. Como ela mesmo diz: “Eu sou muito mulher pra deixar comida faltar pros meus filhos”.
A verdade é que aquele dia no sofá eu vi nosso pai chorar. Acho que foi a primeira vez na minha vida que entendi que a nossa situação não era fácil. Nós sempre tivemos o essencial na nossa mesa. Mas nem sempre tínhamos o suficiente para tudo que queríamos. Entende a diferença?
A gente sempre vivia no limite. O Pai conta que eu sentei no sofá e disse a ele: “Não se preocupe. Com o futebol, vou dar uma vida melhor pra gente.” Antes daquele dia, eu era só uma criança e o futebol, apenas um jogo. Depois daquele dia, o futebol se transformou no caminho para uma vida melhor.
Algumas semanas depois, fui pra São Paulo para treinar na Academia do Palmeiras e anotei meu primeiro objetivo: “Melhorar a situação da nossa família”. Colocar objetivos é algo importante da minha vida. É a minha maneira de conversar com Deus. Quando fui para o Palmeiras, sabia que faria pelo menos 2 a 3 refeições por dia na escola e no treinamento. Mas para a Mãe, infelizmente, não foi tão simples…
Ela deixou sua vida pra trás para apoiar meu sonho em São Paulo. O clube só tinha espaço para mim, mas ela disse que não tinha como eu ir sem ela. O Pai ficou em Brasilia, trabalhando para mandar dinheiro pra gente, enquanto ela foi morar comigo em uma casinha junto com alguns dos meus companheiros. Todos debaixo do mesmo teto. Mas quando a gente ia treinar, a Mãe não tinha com quem conversar. Não tinha TV nem internet em casa, então, ela levava a Bíblia para o parque, sentava e falava sozinha com Deus. A única coisa que ela possuía na casa era uma cadeira. Ela deixava a bolsa em cima dela e, quando a gente ia pra cama, ela dormia um pouco no colchão que ficava no chão.
Eu sei que é difícil para você imaginar a mamãe dormindo no chão, mas esta é a verdade. Foi assim que aconteceu. Às vezes, a Mãe estava literalmente contando os últimos trocados. O Pai continuava mandando dinheiro, mas naquela época não tinha o Pix, então, o dinheiro demorava um ou dois dias para cair na conta. Nos dias bons, quando o dinheiro rendia, a Mãe cozinhava linguiça para os outros meninos. Mas na maioria dos dias, só dava pra gente mesmo comer, e ela se sentia muito culpada fazendo comida em casa, porque os meninos sentiam o cheiro da carne cozinhando, e eles perguntavam se tinha alguma pra eles também….. O que ela poderia dizer? Não sobrava nada.
Na verdade, foi tão doloroso que ela até parou de cozinhar. Lembro que teve momentos em que eu estava meio com fome, pouco antes de dormir, sabe? Tipo, eu podia comer. Então, eu perguntava pra Mãe se tinha alguma coisa e ela dizia: “Vai dormir, Endrick, que a fome passa”.
Outras vezes, quando a gente estava desesperado por dinheiro, a Mãe conseguia pedir emprestado arroz ou mesmo algum trocado. Mas um dia, irmão… Ela não tinha mais para quem pedir. Estava sem dinheiro e sem ter a quem recorrer. Ela ligou para o Pai e disse: “Douglas, estou com fome… Não sei o que fazer”.
O Pai mandou 50 reais, mas o dinheiro só ficaria disponível no dia seguinte. Ela se ajoelhou e orou a Deus pedindo ajuda. Então, ela pegou a bolsa na cadeira e começou a revirar, cavando até o fundo. Ela achou 2 reais, irmão. Trocados perdidos. Um presente de Deus.
Ela foi ao supermercado e comprou broinha de milho de dois dias. E se você perguntar a ela agora, ela vai te dizer que o sabor estava maravilhoso. A Mãe fala que a fome traz uma sensação muito estranha. Faz com que até broinha de milho de dois dias tenha o melhor gosto do mundo.
Para ser sincero, gostaria de não ter que te contar isso, porque a fome não é uma coisa boa. Espero que você nunca experimente isso, como mamãe passou. Mas é uma parte importante da nossa história. Na próxima vez que você encontrar com ela, dá um abraço forte e agradeça, porque sem os sacrifícios dela não teríamos a vida que temos hoje.
Na verdade, nem mesmo eu conhecia essas histórias até bem pouco tempo atrás, porque a Mãe sempre escondia sua dor para proteger meu sonho. Eu nunca vi a Mãe chorar. Ela costumava entrar no banheiro para eu não perceber. Mas a Mãe telefonava para o Pai muitas vezes, dizendo que não aguentava mais, que queria voltar pra casa, só que aí eu voltava dos treinos contando histórias sobre o que aconteceu naquele dia, e os gols que marcamos… E ela via meus olhos brilhando. Então ela ficou. Por mim. Pela nossa família.
Essa é a nossa Mãe, sempre fazendo o que é necessário. Às vezes, ela é a sargento, aquela que briga e grita, dizendo as coisas que precisamos, mas não queremos ouvir. E outras vezes ela nos abraça e prepara as melhores omeletes do planeta. O que quer que ela faça, lembre-se de que é tudo por um motivo simples. Ela sempre quer o que é melhor para nós.
O Pai também se sacrificou muito. Depois de alguns meses, ele veio para São Paulo nos apoiar e foi até o Palmeiras, pedindo ao clube um emprego onde fosse possível. Eles só tinham uma vaga. O Pai começou a trabalhar na equipe de limpeza, dentro do estádio. Ele sempre sonhou em estar em um ambiente de vestiário quando era menino, então, ele ia trabalhar com um sorriso no rosto. Ele ficou lá por três anos, primeiro catando lixo no estádio e depois sendo promovido para limpar o vestiário do time titular. Ele dizia para os jogadores que um dia seu filho jogaria com eles.
Certo dia, o goleiro Jailson percebeu que o Pai estava ficando cada vez mais magro. No refeitório, a equipe de limpeza e o pessoal comiam com os jogadores, e ele viu que o Pai estava apenas tomando sopa. Então, ele colocou o braço em volta do Pai e disse: “Ei, Douglas, me dá seu telefone que eu quero ligar para sua esposa”. Daí o Pai falou: “Minha esposa? Não é assim não, Jailson! O que você quer com minha esposa???”. Jailson, então, disse: “Não, não, quero que ela me conte o que está acontecendo com você, que nunca come nada. Você está bem?”.
O Pai ficou com vergonha de explicar o que estava acontecendo, então, ligou para a mamãe, e ela contou para o Jailson o que realmente estava acontecendo. História real. Como o Pai queimou a mão quando era criança em um churrasco, e a coisa foi tão séria que ele quase perdeu a mão. Os médicos deram remédios fortes para combater a infecção, e isso enfraqueceu seus dentes. Na época em que ele trabalhava no Palmeiras, todos os dentes estavam caindo. Ele só podia tomar sopa.
Então o Jailson saiu fazendo uma vaquinha com todos os jogadores e eles surpreenderam o papai com dinheiro para ele consertar os dentes. Deus trabalha de maneiras incríveis, irmão. O Pai costumava falar: “Meu sonho é morder uma maçã”. Hoje, graças a Deus, ele pode morder a comida que quiser.
Naquela época, meu segundo objetivo também foi alcançado. A gente se mudou para um apartamento em cima de uma casa lotérica bem ao lado do estádio do Palmeiras. Eu podia olhar pela janela e ver meu sonho todas as manhãs quando acordava e todas as noites quando ia dormir. Era lindo. Opa, espera, que eu esqueci de contar a história completa do Pai…
A Mãe é nossa rocha e o Pai, nosso “pacero”. Sempre foi assim. Mas tem muito mais da história dele que você não sabe. Se você acha que foi difícil pra mim, você está errado. Eu nasci em berço de ouro comparado ao Pai. Quando era menino, nosso avô não esteve tão perto dele. O futebol também era uma saída para o nosso Pai. Quando ele tinha 15 anos, ele saiu de casa e foi andando pela estrada de Brasília a São Paulo. Andando! Durante boa parte do caminho… É muito longe, irmão. E ele nem contou pra Mãe dele! Nessa viagem, ele carregou a vida inteira nas costas: um par de chuteiras, duas garrafas de 2 litros – uma com água, outra com água misturada com Tang – e alguns pães. O plano dele era fazer testes em todos os clubes da cidade. Isso demorou uma semana inteira, ele andava e pegava carona na estrada.
Quando finalmente chegou a São Paulo, não tinha dinheiro, e nem para onde ir, então, ele ficava andando e batendo nas portas dos clubes perguntando quando aconteceriam as peneiras. Alguém do São Paulo FC viu que ele estava passando dificuldades e deu pra ele um pouco de comida da cantina. Numa das noites mais frias, uma senhora de uma instituição de caridade viu que ele estava dormindo debaixo de uma árvore em um parque e chamou o Pai para ficar em um abrigo. O lugar estava tão aconchegante, e já fazia mais de três noites que ele não deitava em uma cama, que o Pai dormiu demais e perdeu a peneira do Nacional Atlético Clube no dia seguinte.
Você pode imaginar o tanto que o Pai devia estar cansado? Você pode imaginar passar uma semana caminhando para ir atrás do seu sonho, para fazer uma peneira… e você acaba perdendo a oportunidade? Quando ele me contou, irmão, eu não sabia se ria ou chorava.
Teve outra noite em que estava chovendo e o Pai não tinha para onde ir, então, ele foi andando até o estádio do Palmeiras e dormiu embaixo do teto da bilheteria. Ele não conseguiu realizar seu sonho, mas deu tudo de si.
Quando voltou para Brasília, jogou na várzea para se sustentar. Você sabe como é a várzea, né? Não tem salário, irmão. É só paixão. Eles jogam por uma “ajuda de custo”, quando dá tudo certo. O Pai jogava pela conta de luz ou por um saco de arroz. Quando era criança, eu acompanhava o Pai em todas as partidas e ficava chutando a bola no cantinho do campo. Na hora do intervalo, eles ficavam tocando música e todo mundo festejava, eu entrava em campo pra brincar e ganhar umas apostas. (Cara, por que você acha que eu fico cantando sozinho quando estou jogando?)
O pai me via depois dos jogos e perguntava: “Endrick, como é que você conseguiu esta Coca-Cola, parceiro? Você não está pegando de alguém, está?”. Eu respondia: “Não, não, eu acertei um chute na trave e o Dudu ali ganhou 10 reais. Ele me comprou uma Coca-Cola porque eu ajudei ele a ganhar uma aposta. Se eu acertar de novo, ele vai me comprar um espetinho de carne!”
Esse era o meu corre! A Mãe dizia que eu chegava em casa com as pernas todas cinza depois de brincar no barro por tanto tempo. Você sabe como é a terra cinzenta do Brasil. Espero que você ainda se lembre disso. A Mãe tinha que me lavar como se eu fosse um pet. Assim que ficava limpo, pssshhewww — eu já saía como um foguete pra brincar. (Lembra do que eu disse? Nasci no futebol.). Futebol não foi apenas o meu sonho, mas o sonho do nosso Pai, do nosso avô, o sonho de toda família.
Você acha que quando papai estava dormindo embaixo da bilheteria do estádio do Palmeiras, ele teria sonhado que seu filho jogaria lá um dia?
Quando eu tinha 15 anos e me tornei profissional no Palmeiras, posso dizer honestamente que alcancei tudo que eu sempre quis na minha vida, graças a Deus. Consegui comprar uma casa pra mamãe e tirar nossas duas avós de Chaparral, que era perigoso. Depois daquela conversa que tive com o Pai no sofá, eu sabia que agora tinha alcançado meu primeiro objetivo: ajudar minha família a ter uma vida melhor.
Que momento! Mas também… cara… que alívio. Quando você era bebezinho, já vivíamos uma vida muito diferente, e a nossa vida vai continuar mudando nos próximos anos.
Dentro de alguns meses partirei para a Espanha e você vem comigo. Real Madrid…. Esse era o meu terceiro objetivo e foi o único que nunca ousei escrever. Quando era pequeno, eu não tinha celular ou qualquer coisa, então eu costumava pegar emprestado o computador da mamãe e assistir aos melhores momentos dos jogos do Real Madrid, desde os 7 ou 8 anos. Eu sei que você é muito jovem para lembrar desses nomes, mas eu estava obcecado com aquela equipe de 2013-14 com Cristiano, Modric e Benzema. Essa foi minha porta de entrada na história do clube. Comecei a entrar no YouTube e aprender sobre o Galácticos e depois cada vez mais fundo — Puskás, Di Stéfano… Pode acreditar, em Madri, você vai ouvir falar mais sobre esses craques.
Você pode aprender qualquer coisa no YouTube. É mais ou menos como uma universidade. Mais do que ninguém, eu assisti Cristiano. Não apenas os melhores momentos, mas também o quanto ele se dedicou e o que outros diziam sobre sua mentalidade. Com ele, aprendi que o trabalho duro é até mais importante que o talento.
Espero que possa conhecer o Cristiano um dia. Enquanto escrevo estas palavras, isso ainda não aconteceu. Mas o filho dele me segue no Instagram, então, espero que no momento em que você estiver lendo este texto, eu já tenha conseguido apertar a mão dele. Se Deus quiser, vai correr tudo bem no Real Madrid e na minha carreira, e o Cristiano vai me seguir! Talvez você e eu! Hahaha. Conhecer Cristiano Ronaldo. Esse é o objetivo número 4. A meta número 5 é que o resto desta temporada com o Palmeiras termine bem, com o nosso time vencendo o Paulistão mais uma vez.
O objetivo número 6… Na verdade, tenho uma história engraçada sobre isso. Quando fui visitar o Real Madrid pela primeira vez há alguns meses, muitas coisas incríveis aconteceram. Quando conhecemos Florentino Pérez, ele olhou nos olhos do Pai e disse: “O Real Madrid será o único clube que tratará Endrick como um filho.” Isso foi muito impactante pro Pai.
Conheci o Bellingham, aquele cara muito bom que sempre marca para mim no PlayStation, e todo mundo o chama de Jude, então eu disse a ele: “Ei, Jude, no meu próximo gol, vou fazer sua comemoração.” Quando marquei, mandei o vídeo para ele no Instagram e ele repostou.
Até recebi alguns conselhos do Ronaldo Fenômeno. Tudo aconteceu muito rápido, como se eu estivesse em um sonho. Mas o que mais me lembro é quando entrei no vestiário e o Modric falou comigo. A camisa 10 estava pendurada e ele apontou para o assento ao lado ele e disse: “Número 9 e Número 10. Quem sabe… na próxima temporada, talvez você se sente do meu lado”.
Isso mexeu comigo, de verdade. Eu pensei: Cara, se o Modric acredita que sou digno de usar a número 9, então devo ser pra valer mesmo! Ainda não cheguei a Madri, por isso não sei, mas espero um dia usar a 9 do Real Madrid. E quanto ao objetivo número 7? Quero minha própria casa em Madri com um escritório, pra poder colocar minha lousa bem grande com meus objetivos! Hahaha. A Mãe ainda não me deixa colocar uma lousa na casa dela!
“Não tem espaço pra isso, Endrick! Simples assim!” Você sabe como ela é. Temos que ouvir e respeitar. Na verdade, eu tinha outro objetivo, mas não vou numerar aqui, porque já foi alcançado. Esse objetivo é que você viva a vida que desejar, seja ela qual for.
Durante três gerações, ou talvez mais, a nossa família teve que perseguir o sonho do futebol, tentado mudar nossas condições. Mas agora você pode fazer o que você quiser. Você pode ser médico ou advogado, ou talvez, já que vamos para a Espanha, no país de Nadal e Alcaraz, você pode se tornar um tenista profissional. Você já está correndo atrás da bola, como eu. Então você pode ser jogador de futebol, se quiser. Mas você não tem que ser. Não há mais estresse, graças a Deus, graças à Mãe e ao Pai, e graças ao futebol.
Quero que você aproveite sua vida como quiser, irmão. É o meu presente pra você. E agora é aqui que esta carta termina e o futuro começa. Veja bem, as pessoas me perguntam o tempo todo sobre o Real Madrid e a Seleção Brasileira e como acho que será minha carreira. Mas você sabe qual é a real? Eu simplesmente não sei.
Na vida, não sabemos como será o dia de amanhã. Não sabemos se teremos um amanhã. Tudo o que podemos fazer é agradecer a Deus por tudo que Ele nos deu. Espero que você entenda, irmão. A vida que estamos vivendo agora não surgiu do nada. Foi conquistada, com muito trabalho e muitas lágrimas. Mamãe sempre diz que um único erro pode fazer com que tudo desmorone, e ela está certa.
No momento em que esquecemos de onde viemos, corremos o risco de nos perdermos. É por isso que estou te dando como presente a história da nossa família. A Mãe comendo a broinha de milho velha. O Pai dormindo embaixo da bilheteria. A Mãe chorando no banheiro. O Pai chorando no sofá. Que você sempre guarde isso em seu coração. Te amo, Mano. Do fundo do meu coração, Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.
Endrick, jogador do Palmeiras que tem se destacado também na seleção brasileira, vem chamando atenção do mundo pelo futebol, inclusive sendo previamente contratado pelo Real Madrid assim que completar 18 anos de idade.
O atleta, que disputa neste domingo a final do campeonato Paulista, contra o Santos, a partir das 18h, emocionou muita gente também fora de campo ao dedicar uma carta ao irmão mais novo, Noah, de 4 anos.
Leia a carta de Endrick para o irmão na íntegra
Querido Noah, Eu te amo. Esta é a primeira coisa, acima de tudo. Desde o primeiro dia, sinto que temos uma ligação muito especial. Eu nunca te contei isso, mas, no dia do seu nascimento, parece que você só estava esperando eu marcar um gol para nascer.
É verdade, irmão. Eu estava jogando uma partida importante na época, tinha apenas 13 anos, e você não queria sair da barriga da mamãe. O relógio fazia tic-tac-tic-tac sem parar, e mamãe e papai se perguntavam o que você estava esperando. Então, de repente, o Pai recebeu uma ligação de seu amigo que estava no jogo.
Ele disse: “Douglas!! Douglas!! Endrick acabou de fazer um gol!!”. E então, naquele exato momento, tudo que se ouviu no quarto do hospital foi Wwwwwwaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!! Você finalmente saiu para comemorar comigo. Quando cheguei ao hospital, te dei um presente de aniversário. Eu não tinha dinheiro para comprar um brinquedo, mas levei pra você a bola de ouro que ganhei do torneio.
Viu só? Na nossa família, não nascemos em berço de ouro. Nascemos no berço do futebol. Não sei quando você vai ler esta carta, mas agora você tem quatro anos, e nossas vidas estão mudando muito rápido. Nos próximos meses, vou para a Espanha jogar pelo Real Madrid — sim, o time que eu sempre escolho no PlayStation quando você me assiste jogando. Eu sei que o mundo vai querer saber sobre a história da nossa família. E é uma história maluca, irmão! Então esta é minha chance de te contar como tudo realmente aconteceu, e com a Mãe e o Pai aqui para me ajudar.
Como você sabe, na nossa família tudo sempre começa e termina com a bola. A Mãe diz que, quando eu era um bebê, nunca fiz vvvrrooooom!!! como você. Se me dessem um brinquedo, eu ficaria com ele cinco segundos e depois colocava de volta na caixa. Tudo que eu queria era “bola, bola, bola”.
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Pode perguntar pra Mãe como eu me apresentava pras pessoas. “E qual é o seu nome, moleque?” “Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.” As pessoas riam de mim, tá ligado? “Que criança mais fofa”. Mas, irmão, eu tava falando sério. Eu tinha certeza que conseguiria, e a nossa Mãe ainda chora quando se lembra disso. Ela sempre disse que as palavras têm poder.
Naquela época, a gente não morava em um apartamento chique como agora. Não tinha geladeira cheia dos iogurtes que você tanto ama. A gente vivia no alto do morro, num lugar chamado Vila Guaíra, e a vida era diferente. Você vai ouvir todo tipo de história sobre a gente vindo de outras pessoas nos próximos anos, e até vão dizer que tudo foi “dor e sofrimento”. Mas a verdade é que eu tive uma infância incrível, graças a Deus, e graças a tudo que a Mãe e o Pai fizeram por mim. E graças ao futebol, claro.
Acho que nunca te contei isso, mas quando eu tinha mais ou menos a sua idade, nossa rua ficava nesse morro. A gente jogava futebol lá com todo o pessoal do bairro, e um dos motivos que fazia a gente ser tão bom é que, se a bola rolasse ladeira abaixo, quem perdia o gol tinha de ir até a favela lá embaixo para buscar. Tipo, o moleque corria, passava por um jogador e, se perdesse o gol, tinha que correr ainda mais pra pegar a bola antes de ela chegar lá embaixo. Era cansativo, mas as regras na rua são muito claras. Quem chuta, busca!
Tenho muitas saudades daquela época, quando eu era apenas uma criança e o futebol, só um jogo. Quando os amigos ficavam sentados, batendo papo… É resenha que fala, né? Eu realmente gostaria que a gente pudesse ter vivido esse tempo juntos, irmão. Quando penso nisso, fico feliz e triste ao mesmo tempo. Boas lembranças de um tempo que eu sei que não vai voltar, sabe? Até mesmo as lembranças ruins, às vezes, são doces.
Quando você crescer, vai ouvir a história da “conversa no sofá”. Tem um monte de gente que já fala sobre isso no Brasil, mas eles não entenderam a história. Eles falam que éramos pobres e que não tínhamos o que comer, mas isso não é verdade. Eles não conhecem nossa Mãe. Como ela mesmo diz: “Eu sou muito mulher pra deixar comida faltar pros meus filhos”.
A verdade é que aquele dia no sofá eu vi nosso pai chorar. Acho que foi a primeira vez na minha vida que entendi que a nossa situação não era fácil. Nós sempre tivemos o essencial na nossa mesa. Mas nem sempre tínhamos o suficiente para tudo que queríamos. Entende a diferença?
A gente sempre vivia no limite. O Pai conta que eu sentei no sofá e disse a ele: “Não se preocupe. Com o futebol, vou dar uma vida melhor pra gente.” Antes daquele dia, eu era só uma criança e o futebol, apenas um jogo. Depois daquele dia, o futebol se transformou no caminho para uma vida melhor.
Algumas semanas depois, fui pra São Paulo para treinar na Academia do Palmeiras e anotei meu primeiro objetivo: “Melhorar a situação da nossa família”. Colocar objetivos é algo importante da minha vida. É a minha maneira de conversar com Deus. Quando fui para o Palmeiras, sabia que faria pelo menos 2 a 3 refeições por dia na escola e no treinamento. Mas para a Mãe, infelizmente, não foi tão simples…
Ela deixou sua vida pra trás para apoiar meu sonho em São Paulo. O clube só tinha espaço para mim, mas ela disse que não tinha como eu ir sem ela. O Pai ficou em Brasilia, trabalhando para mandar dinheiro pra gente, enquanto ela foi morar comigo em uma casinha junto com alguns dos meus companheiros. Todos debaixo do mesmo teto. Mas quando a gente ia treinar, a Mãe não tinha com quem conversar. Não tinha TV nem internet em casa, então, ela levava a Bíblia para o parque, sentava e falava sozinha com Deus. A única coisa que ela possuía na casa era uma cadeira. Ela deixava a bolsa em cima dela e, quando a gente ia pra cama, ela dormia um pouco no colchão que ficava no chão.
Eu sei que é difícil para você imaginar a mamãe dormindo no chão, mas esta é a verdade. Foi assim que aconteceu. Às vezes, a Mãe estava literalmente contando os últimos trocados. O Pai continuava mandando dinheiro, mas naquela época não tinha o Pix, então, o dinheiro demorava um ou dois dias para cair na conta. Nos dias bons, quando o dinheiro rendia, a Mãe cozinhava linguiça para os outros meninos. Mas na maioria dos dias, só dava pra gente mesmo comer, e ela se sentia muito culpada fazendo comida em casa, porque os meninos sentiam o cheiro da carne cozinhando, e eles perguntavam se tinha alguma pra eles também….. O que ela poderia dizer? Não sobrava nada.
Na verdade, foi tão doloroso que ela até parou de cozinhar. Lembro que teve momentos em que eu estava meio com fome, pouco antes de dormir, sabe? Tipo, eu podia comer. Então, eu perguntava pra Mãe se tinha alguma coisa e ela dizia: “Vai dormir, Endrick, que a fome passa”.
Outras vezes, quando a gente estava desesperado por dinheiro, a Mãe conseguia pedir emprestado arroz ou mesmo algum trocado. Mas um dia, irmão… Ela não tinha mais para quem pedir. Estava sem dinheiro e sem ter a quem recorrer. Ela ligou para o Pai e disse: “Douglas, estou com fome… Não sei o que fazer”.
O Pai mandou 50 reais, mas o dinheiro só ficaria disponível no dia seguinte. Ela se ajoelhou e orou a Deus pedindo ajuda. Então, ela pegou a bolsa na cadeira e começou a revirar, cavando até o fundo. Ela achou 2 reais, irmão. Trocados perdidos. Um presente de Deus.
Ela foi ao supermercado e comprou broinha de milho de dois dias. E se você perguntar a ela agora, ela vai te dizer que o sabor estava maravilhoso. A Mãe fala que a fome traz uma sensação muito estranha. Faz com que até broinha de milho de dois dias tenha o melhor gosto do mundo.
Para ser sincero, gostaria de não ter que te contar isso, porque a fome não é uma coisa boa. Espero que você nunca experimente isso, como mamãe passou. Mas é uma parte importante da nossa história. Na próxima vez que você encontrar com ela, dá um abraço forte e agradeça, porque sem os sacrifícios dela não teríamos a vida que temos hoje.
Na verdade, nem mesmo eu conhecia essas histórias até bem pouco tempo atrás, porque a Mãe sempre escondia sua dor para proteger meu sonho. Eu nunca vi a Mãe chorar. Ela costumava entrar no banheiro para eu não perceber. Mas a Mãe telefonava para o Pai muitas vezes, dizendo que não aguentava mais, que queria voltar pra casa, só que aí eu voltava dos treinos contando histórias sobre o que aconteceu naquele dia, e os gols que marcamos… E ela via meus olhos brilhando. Então ela ficou. Por mim. Pela nossa família.
Essa é a nossa Mãe, sempre fazendo o que é necessário. Às vezes, ela é a sargento, aquela que briga e grita, dizendo as coisas que precisamos, mas não queremos ouvir. E outras vezes ela nos abraça e prepara as melhores omeletes do planeta. O que quer que ela faça, lembre-se de que é tudo por um motivo simples. Ela sempre quer o que é melhor para nós.
O Pai também se sacrificou muito. Depois de alguns meses, ele veio para São Paulo nos apoiar e foi até o Palmeiras, pedindo ao clube um emprego onde fosse possível. Eles só tinham uma vaga. O Pai começou a trabalhar na equipe de limpeza, dentro do estádio. Ele sempre sonhou em estar em um ambiente de vestiário quando era menino, então, ele ia trabalhar com um sorriso no rosto. Ele ficou lá por três anos, primeiro catando lixo no estádio e depois sendo promovido para limpar o vestiário do time titular. Ele dizia para os jogadores que um dia seu filho jogaria com eles.
Certo dia, o goleiro Jailson percebeu que o Pai estava ficando cada vez mais magro. No refeitório, a equipe de limpeza e o pessoal comiam com os jogadores, e ele viu que o Pai estava apenas tomando sopa. Então, ele colocou o braço em volta do Pai e disse: “Ei, Douglas, me dá seu telefone que eu quero ligar para sua esposa”. Daí o Pai falou: “Minha esposa? Não é assim não, Jailson! O que você quer com minha esposa???”. Jailson, então, disse: “Não, não, quero que ela me conte o que está acontecendo com você, que nunca come nada. Você está bem?”.
O Pai ficou com vergonha de explicar o que estava acontecendo, então, ligou para a mamãe, e ela contou para o Jailson o que realmente estava acontecendo. História real. Como o Pai queimou a mão quando era criança em um churrasco, e a coisa foi tão séria que ele quase perdeu a mão. Os médicos deram remédios fortes para combater a infecção, e isso enfraqueceu seus dentes. Na época em que ele trabalhava no Palmeiras, todos os dentes estavam caindo. Ele só podia tomar sopa.
Então o Jailson saiu fazendo uma vaquinha com todos os jogadores e eles surpreenderam o papai com dinheiro para ele consertar os dentes. Deus trabalha de maneiras incríveis, irmão. O Pai costumava falar: “Meu sonho é morder uma maçã”. Hoje, graças a Deus, ele pode morder a comida que quiser.
Naquela época, meu segundo objetivo também foi alcançado. A gente se mudou para um apartamento em cima de uma casa lotérica bem ao lado do estádio do Palmeiras. Eu podia olhar pela janela e ver meu sonho todas as manhãs quando acordava e todas as noites quando ia dormir. Era lindo. Opa, espera, que eu esqueci de contar a história completa do Pai…
A Mãe é nossa rocha e o Pai, nosso “pacero”. Sempre foi assim. Mas tem muito mais da história dele que você não sabe. Se você acha que foi difícil pra mim, você está errado. Eu nasci em berço de ouro comparado ao Pai. Quando era menino, nosso avô não esteve tão perto dele. O futebol também era uma saída para o nosso Pai. Quando ele tinha 15 anos, ele saiu de casa e foi andando pela estrada de Brasília a São Paulo. Andando! Durante boa parte do caminho… É muito longe, irmão. E ele nem contou pra Mãe dele! Nessa viagem, ele carregou a vida inteira nas costas: um par de chuteiras, duas garrafas de 2 litros – uma com água, outra com água misturada com Tang – e alguns pães. O plano dele era fazer testes em todos os clubes da cidade. Isso demorou uma semana inteira, ele andava e pegava carona na estrada.
Quando finalmente chegou a São Paulo, não tinha dinheiro, e nem para onde ir, então, ele ficava andando e batendo nas portas dos clubes perguntando quando aconteceriam as peneiras. Alguém do São Paulo FC viu que ele estava passando dificuldades e deu pra ele um pouco de comida da cantina. Numa das noites mais frias, uma senhora de uma instituição de caridade viu que ele estava dormindo debaixo de uma árvore em um parque e chamou o Pai para ficar em um abrigo. O lugar estava tão aconchegante, e já fazia mais de três noites que ele não deitava em uma cama, que o Pai dormiu demais e perdeu a peneira do Nacional Atlético Clube no dia seguinte.
Você pode imaginar o tanto que o Pai devia estar cansado? Você pode imaginar passar uma semana caminhando para ir atrás do seu sonho, para fazer uma peneira… e você acaba perdendo a oportunidade? Quando ele me contou, irmão, eu não sabia se ria ou chorava.
Teve outra noite em que estava chovendo e o Pai não tinha para onde ir, então, ele foi andando até o estádio do Palmeiras e dormiu embaixo do teto da bilheteria. Ele não conseguiu realizar seu sonho, mas deu tudo de si.
Quando voltou para Brasília, jogou na várzea para se sustentar. Você sabe como é a várzea, né? Não tem salário, irmão. É só paixão. Eles jogam por uma “ajuda de custo”, quando dá tudo certo. O Pai jogava pela conta de luz ou por um saco de arroz. Quando era criança, eu acompanhava o Pai em todas as partidas e ficava chutando a bola no cantinho do campo. Na hora do intervalo, eles ficavam tocando música e todo mundo festejava, eu entrava em campo pra brincar e ganhar umas apostas. (Cara, por que você acha que eu fico cantando sozinho quando estou jogando?)
O pai me via depois dos jogos e perguntava: “Endrick, como é que você conseguiu esta Coca-Cola, parceiro? Você não está pegando de alguém, está?”. Eu respondia: “Não, não, eu acertei um chute na trave e o Dudu ali ganhou 10 reais. Ele me comprou uma Coca-Cola porque eu ajudei ele a ganhar uma aposta. Se eu acertar de novo, ele vai me comprar um espetinho de carne!”
Esse era o meu corre! A Mãe dizia que eu chegava em casa com as pernas todas cinza depois de brincar no barro por tanto tempo. Você sabe como é a terra cinzenta do Brasil. Espero que você ainda se lembre disso. A Mãe tinha que me lavar como se eu fosse um pet. Assim que ficava limpo, pssshhewww — eu já saía como um foguete pra brincar. (Lembra do que eu disse? Nasci no futebol.). Futebol não foi apenas o meu sonho, mas o sonho do nosso Pai, do nosso avô, o sonho de toda família.
Você acha que quando papai estava dormindo embaixo da bilheteria do estádio do Palmeiras, ele teria sonhado que seu filho jogaria lá um dia?
Quando eu tinha 15 anos e me tornei profissional no Palmeiras, posso dizer honestamente que alcancei tudo que eu sempre quis na minha vida, graças a Deus. Consegui comprar uma casa pra mamãe e tirar nossas duas avós de Chaparral, que era perigoso. Depois daquela conversa que tive com o Pai no sofá, eu sabia que agora tinha alcançado meu primeiro objetivo: ajudar minha família a ter uma vida melhor.
Que momento! Mas também… cara… que alívio. Quando você era bebezinho, já vivíamos uma vida muito diferente, e a nossa vida vai continuar mudando nos próximos anos.
Dentro de alguns meses partirei para a Espanha e você vem comigo. Real Madrid…. Esse era o meu terceiro objetivo e foi o único que nunca ousei escrever. Quando era pequeno, eu não tinha celular ou qualquer coisa, então eu costumava pegar emprestado o computador da mamãe e assistir aos melhores momentos dos jogos do Real Madrid, desde os 7 ou 8 anos. Eu sei que você é muito jovem para lembrar desses nomes, mas eu estava obcecado com aquela equipe de 2013-14 com Cristiano, Modric e Benzema. Essa foi minha porta de entrada na história do clube. Comecei a entrar no YouTube e aprender sobre o Galácticos e depois cada vez mais fundo — Puskás, Di Stéfano… Pode acreditar, em Madri, você vai ouvir falar mais sobre esses craques.
Você pode aprender qualquer coisa no YouTube. É mais ou menos como uma universidade. Mais do que ninguém, eu assisti Cristiano. Não apenas os melhores momentos, mas também o quanto ele se dedicou e o que outros diziam sobre sua mentalidade. Com ele, aprendi que o trabalho duro é até mais importante que o talento.
Espero que possa conhecer o Cristiano um dia. Enquanto escrevo estas palavras, isso ainda não aconteceu. Mas o filho dele me segue no Instagram, então, espero que no momento em que você estiver lendo este texto, eu já tenha conseguido apertar a mão dele. Se Deus quiser, vai correr tudo bem no Real Madrid e na minha carreira, e o Cristiano vai me seguir! Talvez você e eu! Hahaha. Conhecer Cristiano Ronaldo. Esse é o objetivo número 4. A meta número 5 é que o resto desta temporada com o Palmeiras termine bem, com o nosso time vencendo o Paulistão mais uma vez.
O objetivo número 6… Na verdade, tenho uma história engraçada sobre isso. Quando fui visitar o Real Madrid pela primeira vez há alguns meses, muitas coisas incríveis aconteceram. Quando conhecemos Florentino Pérez, ele olhou nos olhos do Pai e disse: “O Real Madrid será o único clube que tratará Endrick como um filho.” Isso foi muito impactante pro Pai.
Conheci o Bellingham, aquele cara muito bom que sempre marca para mim no PlayStation, e todo mundo o chama de Jude, então eu disse a ele: “Ei, Jude, no meu próximo gol, vou fazer sua comemoração.” Quando marquei, mandei o vídeo para ele no Instagram e ele repostou.
Até recebi alguns conselhos do Ronaldo Fenômeno. Tudo aconteceu muito rápido, como se eu estivesse em um sonho. Mas o que mais me lembro é quando entrei no vestiário e o Modric falou comigo. A camisa 10 estava pendurada e ele apontou para o assento ao lado ele e disse: “Número 9 e Número 10. Quem sabe… na próxima temporada, talvez você se sente do meu lado”.
Isso mexeu comigo, de verdade. Eu pensei: Cara, se o Modric acredita que sou digno de usar a número 9, então devo ser pra valer mesmo! Ainda não cheguei a Madri, por isso não sei, mas espero um dia usar a 9 do Real Madrid. E quanto ao objetivo número 7? Quero minha própria casa em Madri com um escritório, pra poder colocar minha lousa bem grande com meus objetivos! Hahaha. A Mãe ainda não me deixa colocar uma lousa na casa dela!
“Não tem espaço pra isso, Endrick! Simples assim!” Você sabe como ela é. Temos que ouvir e respeitar. Na verdade, eu tinha outro objetivo, mas não vou numerar aqui, porque já foi alcançado. Esse objetivo é que você viva a vida que desejar, seja ela qual for.
Durante três gerações, ou talvez mais, a nossa família teve que perseguir o sonho do futebol, tentado mudar nossas condições. Mas agora você pode fazer o que você quiser. Você pode ser médico ou advogado, ou talvez, já que vamos para a Espanha, no país de Nadal e Alcaraz, você pode se tornar um tenista profissional. Você já está correndo atrás da bola, como eu. Então você pode ser jogador de futebol, se quiser. Mas você não tem que ser. Não há mais estresse, graças a Deus, graças à Mãe e ao Pai, e graças ao futebol.
Quero que você aproveite sua vida como quiser, irmão. É o meu presente pra você. E agora é aqui que esta carta termina e o futuro começa. Veja bem, as pessoas me perguntam o tempo todo sobre o Real Madrid e a Seleção Brasileira e como acho que será minha carreira. Mas você sabe qual é a real? Eu simplesmente não sei.
Na vida, não sabemos como será o dia de amanhã. Não sabemos se teremos um amanhã. Tudo o que podemos fazer é agradecer a Deus por tudo que Ele nos deu. Espero que você entenda, irmão. A vida que estamos vivendo agora não surgiu do nada. Foi conquistada, com muito trabalho e muitas lágrimas. Mamãe sempre diz que um único erro pode fazer com que tudo desmorone, e ela está certa.
No momento em que esquecemos de onde viemos, corremos o risco de nos perdermos. É por isso que estou te dando como presente a história da nossa família. A Mãe comendo a broinha de milho velha. O Pai dormindo embaixo da bilheteria. A Mãe chorando no banheiro. O Pai chorando no sofá. Que você sempre guarde isso em seu coração. Te amo, Mano. Do fundo do meu coração, Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.
Endrick, jogador do Palmeiras que tem se destacado também na seleção brasileira, vem chamando atenção do mundo pelo futebol, inclusive sendo previamente contratado pelo Real Madrid assim que completar 18 anos de idade.
O atleta, que disputa neste domingo a final do campeonato Paulista, contra o Santos, a partir das 18h, emocionou muita gente também fora de campo ao dedicar uma carta ao irmão mais novo, Noah, de 4 anos.
Leia a carta de Endrick para o irmão na íntegra
Querido Noah, Eu te amo. Esta é a primeira coisa, acima de tudo. Desde o primeiro dia, sinto que temos uma ligação muito especial. Eu nunca te contei isso, mas, no dia do seu nascimento, parece que você só estava esperando eu marcar um gol para nascer.
É verdade, irmão. Eu estava jogando uma partida importante na época, tinha apenas 13 anos, e você não queria sair da barriga da mamãe. O relógio fazia tic-tac-tic-tac sem parar, e mamãe e papai se perguntavam o que você estava esperando. Então, de repente, o Pai recebeu uma ligação de seu amigo que estava no jogo.
Ele disse: “Douglas!! Douglas!! Endrick acabou de fazer um gol!!”. E então, naquele exato momento, tudo que se ouviu no quarto do hospital foi Wwwwwwaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!! Você finalmente saiu para comemorar comigo. Quando cheguei ao hospital, te dei um presente de aniversário. Eu não tinha dinheiro para comprar um brinquedo, mas levei pra você a bola de ouro que ganhei do torneio.
Viu só? Na nossa família, não nascemos em berço de ouro. Nascemos no berço do futebol. Não sei quando você vai ler esta carta, mas agora você tem quatro anos, e nossas vidas estão mudando muito rápido. Nos próximos meses, vou para a Espanha jogar pelo Real Madrid — sim, o time que eu sempre escolho no PlayStation quando você me assiste jogando. Eu sei que o mundo vai querer saber sobre a história da nossa família. E é uma história maluca, irmão! Então esta é minha chance de te contar como tudo realmente aconteceu, e com a Mãe e o Pai aqui para me ajudar.
Como você sabe, na nossa família tudo sempre começa e termina com a bola. A Mãe diz que, quando eu era um bebê, nunca fiz vvvrrooooom!!! como você. Se me dessem um brinquedo, eu ficaria com ele cinco segundos e depois colocava de volta na caixa. Tudo que eu queria era “bola, bola, bola”.
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Uma bola de fita. Uma bola de meia. Uma bola de basquete. Pouco importava. Se fosse redonda ou até mesmo quadrada, eu queria mesmo é sair chutando. Quando ganhei a bola da Copa de 2014, a Brazuca, do time do pai na várzea, eu ficava só olhando as cores, como se fosse uma pintura. Eu dormia abraçado com ela! Está no sangue, irmão.
Pode perguntar pra Mãe como eu me apresentava pras pessoas. “E qual é o seu nome, moleque?” “Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.” As pessoas riam de mim, tá ligado? “Que criança mais fofa”. Mas, irmão, eu tava falando sério. Eu tinha certeza que conseguiria, e a nossa Mãe ainda chora quando se lembra disso. Ela sempre disse que as palavras têm poder.
Naquela época, a gente não morava em um apartamento chique como agora. Não tinha geladeira cheia dos iogurtes que você tanto ama. A gente vivia no alto do morro, num lugar chamado Vila Guaíra, e a vida era diferente. Você vai ouvir todo tipo de história sobre a gente vindo de outras pessoas nos próximos anos, e até vão dizer que tudo foi “dor e sofrimento”. Mas a verdade é que eu tive uma infância incrível, graças a Deus, e graças a tudo que a Mãe e o Pai fizeram por mim. E graças ao futebol, claro.
Acho que nunca te contei isso, mas quando eu tinha mais ou menos a sua idade, nossa rua ficava nesse morro. A gente jogava futebol lá com todo o pessoal do bairro, e um dos motivos que fazia a gente ser tão bom é que, se a bola rolasse ladeira abaixo, quem perdia o gol tinha de ir até a favela lá embaixo para buscar. Tipo, o moleque corria, passava por um jogador e, se perdesse o gol, tinha que correr ainda mais pra pegar a bola antes de ela chegar lá embaixo. Era cansativo, mas as regras na rua são muito claras. Quem chuta, busca!
Tenho muitas saudades daquela época, quando eu era apenas uma criança e o futebol, só um jogo. Quando os amigos ficavam sentados, batendo papo… É resenha que fala, né? Eu realmente gostaria que a gente pudesse ter vivido esse tempo juntos, irmão. Quando penso nisso, fico feliz e triste ao mesmo tempo. Boas lembranças de um tempo que eu sei que não vai voltar, sabe? Até mesmo as lembranças ruins, às vezes, são doces.
Quando você crescer, vai ouvir a história da “conversa no sofá”. Tem um monte de gente que já fala sobre isso no Brasil, mas eles não entenderam a história. Eles falam que éramos pobres e que não tínhamos o que comer, mas isso não é verdade. Eles não conhecem nossa Mãe. Como ela mesmo diz: “Eu sou muito mulher pra deixar comida faltar pros meus filhos”.
A verdade é que aquele dia no sofá eu vi nosso pai chorar. Acho que foi a primeira vez na minha vida que entendi que a nossa situação não era fácil. Nós sempre tivemos o essencial na nossa mesa. Mas nem sempre tínhamos o suficiente para tudo que queríamos. Entende a diferença?
A gente sempre vivia no limite. O Pai conta que eu sentei no sofá e disse a ele: “Não se preocupe. Com o futebol, vou dar uma vida melhor pra gente.” Antes daquele dia, eu era só uma criança e o futebol, apenas um jogo. Depois daquele dia, o futebol se transformou no caminho para uma vida melhor.
Algumas semanas depois, fui pra São Paulo para treinar na Academia do Palmeiras e anotei meu primeiro objetivo: “Melhorar a situação da nossa família”. Colocar objetivos é algo importante da minha vida. É a minha maneira de conversar com Deus. Quando fui para o Palmeiras, sabia que faria pelo menos 2 a 3 refeições por dia na escola e no treinamento. Mas para a Mãe, infelizmente, não foi tão simples…
Ela deixou sua vida pra trás para apoiar meu sonho em São Paulo. O clube só tinha espaço para mim, mas ela disse que não tinha como eu ir sem ela. O Pai ficou em Brasilia, trabalhando para mandar dinheiro pra gente, enquanto ela foi morar comigo em uma casinha junto com alguns dos meus companheiros. Todos debaixo do mesmo teto. Mas quando a gente ia treinar, a Mãe não tinha com quem conversar. Não tinha TV nem internet em casa, então, ela levava a Bíblia para o parque, sentava e falava sozinha com Deus. A única coisa que ela possuía na casa era uma cadeira. Ela deixava a bolsa em cima dela e, quando a gente ia pra cama, ela dormia um pouco no colchão que ficava no chão.
Eu sei que é difícil para você imaginar a mamãe dormindo no chão, mas esta é a verdade. Foi assim que aconteceu. Às vezes, a Mãe estava literalmente contando os últimos trocados. O Pai continuava mandando dinheiro, mas naquela época não tinha o Pix, então, o dinheiro demorava um ou dois dias para cair na conta. Nos dias bons, quando o dinheiro rendia, a Mãe cozinhava linguiça para os outros meninos. Mas na maioria dos dias, só dava pra gente mesmo comer, e ela se sentia muito culpada fazendo comida em casa, porque os meninos sentiam o cheiro da carne cozinhando, e eles perguntavam se tinha alguma pra eles também….. O que ela poderia dizer? Não sobrava nada.
Na verdade, foi tão doloroso que ela até parou de cozinhar. Lembro que teve momentos em que eu estava meio com fome, pouco antes de dormir, sabe? Tipo, eu podia comer. Então, eu perguntava pra Mãe se tinha alguma coisa e ela dizia: “Vai dormir, Endrick, que a fome passa”.
Outras vezes, quando a gente estava desesperado por dinheiro, a Mãe conseguia pedir emprestado arroz ou mesmo algum trocado. Mas um dia, irmão… Ela não tinha mais para quem pedir. Estava sem dinheiro e sem ter a quem recorrer. Ela ligou para o Pai e disse: “Douglas, estou com fome… Não sei o que fazer”.
O Pai mandou 50 reais, mas o dinheiro só ficaria disponível no dia seguinte. Ela se ajoelhou e orou a Deus pedindo ajuda. Então, ela pegou a bolsa na cadeira e começou a revirar, cavando até o fundo. Ela achou 2 reais, irmão. Trocados perdidos. Um presente de Deus.
Ela foi ao supermercado e comprou broinha de milho de dois dias. E se você perguntar a ela agora, ela vai te dizer que o sabor estava maravilhoso. A Mãe fala que a fome traz uma sensação muito estranha. Faz com que até broinha de milho de dois dias tenha o melhor gosto do mundo.
Para ser sincero, gostaria de não ter que te contar isso, porque a fome não é uma coisa boa. Espero que você nunca experimente isso, como mamãe passou. Mas é uma parte importante da nossa história. Na próxima vez que você encontrar com ela, dá um abraço forte e agradeça, porque sem os sacrifícios dela não teríamos a vida que temos hoje.
Na verdade, nem mesmo eu conhecia essas histórias até bem pouco tempo atrás, porque a Mãe sempre escondia sua dor para proteger meu sonho. Eu nunca vi a Mãe chorar. Ela costumava entrar no banheiro para eu não perceber. Mas a Mãe telefonava para o Pai muitas vezes, dizendo que não aguentava mais, que queria voltar pra casa, só que aí eu voltava dos treinos contando histórias sobre o que aconteceu naquele dia, e os gols que marcamos… E ela via meus olhos brilhando. Então ela ficou. Por mim. Pela nossa família.
Essa é a nossa Mãe, sempre fazendo o que é necessário. Às vezes, ela é a sargento, aquela que briga e grita, dizendo as coisas que precisamos, mas não queremos ouvir. E outras vezes ela nos abraça e prepara as melhores omeletes do planeta. O que quer que ela faça, lembre-se de que é tudo por um motivo simples. Ela sempre quer o que é melhor para nós.
O Pai também se sacrificou muito. Depois de alguns meses, ele veio para São Paulo nos apoiar e foi até o Palmeiras, pedindo ao clube um emprego onde fosse possível. Eles só tinham uma vaga. O Pai começou a trabalhar na equipe de limpeza, dentro do estádio. Ele sempre sonhou em estar em um ambiente de vestiário quando era menino, então, ele ia trabalhar com um sorriso no rosto. Ele ficou lá por três anos, primeiro catando lixo no estádio e depois sendo promovido para limpar o vestiário do time titular. Ele dizia para os jogadores que um dia seu filho jogaria com eles.
Certo dia, o goleiro Jailson percebeu que o Pai estava ficando cada vez mais magro. No refeitório, a equipe de limpeza e o pessoal comiam com os jogadores, e ele viu que o Pai estava apenas tomando sopa. Então, ele colocou o braço em volta do Pai e disse: “Ei, Douglas, me dá seu telefone que eu quero ligar para sua esposa”. Daí o Pai falou: “Minha esposa? Não é assim não, Jailson! O que você quer com minha esposa???”. Jailson, então, disse: “Não, não, quero que ela me conte o que está acontecendo com você, que nunca come nada. Você está bem?”.
O Pai ficou com vergonha de explicar o que estava acontecendo, então, ligou para a mamãe, e ela contou para o Jailson o que realmente estava acontecendo. História real. Como o Pai queimou a mão quando era criança em um churrasco, e a coisa foi tão séria que ele quase perdeu a mão. Os médicos deram remédios fortes para combater a infecção, e isso enfraqueceu seus dentes. Na época em que ele trabalhava no Palmeiras, todos os dentes estavam caindo. Ele só podia tomar sopa.
Então o Jailson saiu fazendo uma vaquinha com todos os jogadores e eles surpreenderam o papai com dinheiro para ele consertar os dentes. Deus trabalha de maneiras incríveis, irmão. O Pai costumava falar: “Meu sonho é morder uma maçã”. Hoje, graças a Deus, ele pode morder a comida que quiser.
Naquela época, meu segundo objetivo também foi alcançado. A gente se mudou para um apartamento em cima de uma casa lotérica bem ao lado do estádio do Palmeiras. Eu podia olhar pela janela e ver meu sonho todas as manhãs quando acordava e todas as noites quando ia dormir. Era lindo. Opa, espera, que eu esqueci de contar a história completa do Pai…
A Mãe é nossa rocha e o Pai, nosso “pacero”. Sempre foi assim. Mas tem muito mais da história dele que você não sabe. Se você acha que foi difícil pra mim, você está errado. Eu nasci em berço de ouro comparado ao Pai. Quando era menino, nosso avô não esteve tão perto dele. O futebol também era uma saída para o nosso Pai. Quando ele tinha 15 anos, ele saiu de casa e foi andando pela estrada de Brasília a São Paulo. Andando! Durante boa parte do caminho… É muito longe, irmão. E ele nem contou pra Mãe dele! Nessa viagem, ele carregou a vida inteira nas costas: um par de chuteiras, duas garrafas de 2 litros – uma com água, outra com água misturada com Tang – e alguns pães. O plano dele era fazer testes em todos os clubes da cidade. Isso demorou uma semana inteira, ele andava e pegava carona na estrada.
Quando finalmente chegou a São Paulo, não tinha dinheiro, e nem para onde ir, então, ele ficava andando e batendo nas portas dos clubes perguntando quando aconteceriam as peneiras. Alguém do São Paulo FC viu que ele estava passando dificuldades e deu pra ele um pouco de comida da cantina. Numa das noites mais frias, uma senhora de uma instituição de caridade viu que ele estava dormindo debaixo de uma árvore em um parque e chamou o Pai para ficar em um abrigo. O lugar estava tão aconchegante, e já fazia mais de três noites que ele não deitava em uma cama, que o Pai dormiu demais e perdeu a peneira do Nacional Atlético Clube no dia seguinte.
Você pode imaginar o tanto que o Pai devia estar cansado? Você pode imaginar passar uma semana caminhando para ir atrás do seu sonho, para fazer uma peneira… e você acaba perdendo a oportunidade? Quando ele me contou, irmão, eu não sabia se ria ou chorava.
Teve outra noite em que estava chovendo e o Pai não tinha para onde ir, então, ele foi andando até o estádio do Palmeiras e dormiu embaixo do teto da bilheteria. Ele não conseguiu realizar seu sonho, mas deu tudo de si.
Quando voltou para Brasília, jogou na várzea para se sustentar. Você sabe como é a várzea, né? Não tem salário, irmão. É só paixão. Eles jogam por uma “ajuda de custo”, quando dá tudo certo. O Pai jogava pela conta de luz ou por um saco de arroz. Quando era criança, eu acompanhava o Pai em todas as partidas e ficava chutando a bola no cantinho do campo. Na hora do intervalo, eles ficavam tocando música e todo mundo festejava, eu entrava em campo pra brincar e ganhar umas apostas. (Cara, por que você acha que eu fico cantando sozinho quando estou jogando?)
O pai me via depois dos jogos e perguntava: “Endrick, como é que você conseguiu esta Coca-Cola, parceiro? Você não está pegando de alguém, está?”. Eu respondia: “Não, não, eu acertei um chute na trave e o Dudu ali ganhou 10 reais. Ele me comprou uma Coca-Cola porque eu ajudei ele a ganhar uma aposta. Se eu acertar de novo, ele vai me comprar um espetinho de carne!”
Esse era o meu corre! A Mãe dizia que eu chegava em casa com as pernas todas cinza depois de brincar no barro por tanto tempo. Você sabe como é a terra cinzenta do Brasil. Espero que você ainda se lembre disso. A Mãe tinha que me lavar como se eu fosse um pet. Assim que ficava limpo, pssshhewww — eu já saía como um foguete pra brincar. (Lembra do que eu disse? Nasci no futebol.). Futebol não foi apenas o meu sonho, mas o sonho do nosso Pai, do nosso avô, o sonho de toda família.
Você acha que quando papai estava dormindo embaixo da bilheteria do estádio do Palmeiras, ele teria sonhado que seu filho jogaria lá um dia?
Quando eu tinha 15 anos e me tornei profissional no Palmeiras, posso dizer honestamente que alcancei tudo que eu sempre quis na minha vida, graças a Deus. Consegui comprar uma casa pra mamãe e tirar nossas duas avós de Chaparral, que era perigoso. Depois daquela conversa que tive com o Pai no sofá, eu sabia que agora tinha alcançado meu primeiro objetivo: ajudar minha família a ter uma vida melhor.
Que momento! Mas também… cara… que alívio. Quando você era bebezinho, já vivíamos uma vida muito diferente, e a nossa vida vai continuar mudando nos próximos anos.
Dentro de alguns meses partirei para a Espanha e você vem comigo. Real Madrid…. Esse era o meu terceiro objetivo e foi o único que nunca ousei escrever. Quando era pequeno, eu não tinha celular ou qualquer coisa, então eu costumava pegar emprestado o computador da mamãe e assistir aos melhores momentos dos jogos do Real Madrid, desde os 7 ou 8 anos. Eu sei que você é muito jovem para lembrar desses nomes, mas eu estava obcecado com aquela equipe de 2013-14 com Cristiano, Modric e Benzema. Essa foi minha porta de entrada na história do clube. Comecei a entrar no YouTube e aprender sobre o Galácticos e depois cada vez mais fundo — Puskás, Di Stéfano… Pode acreditar, em Madri, você vai ouvir falar mais sobre esses craques.
Você pode aprender qualquer coisa no YouTube. É mais ou menos como uma universidade. Mais do que ninguém, eu assisti Cristiano. Não apenas os melhores momentos, mas também o quanto ele se dedicou e o que outros diziam sobre sua mentalidade. Com ele, aprendi que o trabalho duro é até mais importante que o talento.
Espero que possa conhecer o Cristiano um dia. Enquanto escrevo estas palavras, isso ainda não aconteceu. Mas o filho dele me segue no Instagram, então, espero que no momento em que você estiver lendo este texto, eu já tenha conseguido apertar a mão dele. Se Deus quiser, vai correr tudo bem no Real Madrid e na minha carreira, e o Cristiano vai me seguir! Talvez você e eu! Hahaha. Conhecer Cristiano Ronaldo. Esse é o objetivo número 4. A meta número 5 é que o resto desta temporada com o Palmeiras termine bem, com o nosso time vencendo o Paulistão mais uma vez.
O objetivo número 6… Na verdade, tenho uma história engraçada sobre isso. Quando fui visitar o Real Madrid pela primeira vez há alguns meses, muitas coisas incríveis aconteceram. Quando conhecemos Florentino Pérez, ele olhou nos olhos do Pai e disse: “O Real Madrid será o único clube que tratará Endrick como um filho.” Isso foi muito impactante pro Pai.
Conheci o Bellingham, aquele cara muito bom que sempre marca para mim no PlayStation, e todo mundo o chama de Jude, então eu disse a ele: “Ei, Jude, no meu próximo gol, vou fazer sua comemoração.” Quando marquei, mandei o vídeo para ele no Instagram e ele repostou.
Até recebi alguns conselhos do Ronaldo Fenômeno. Tudo aconteceu muito rápido, como se eu estivesse em um sonho. Mas o que mais me lembro é quando entrei no vestiário e o Modric falou comigo. A camisa 10 estava pendurada e ele apontou para o assento ao lado ele e disse: “Número 9 e Número 10. Quem sabe… na próxima temporada, talvez você se sente do meu lado”.
Isso mexeu comigo, de verdade. Eu pensei: Cara, se o Modric acredita que sou digno de usar a número 9, então devo ser pra valer mesmo! Ainda não cheguei a Madri, por isso não sei, mas espero um dia usar a 9 do Real Madrid. E quanto ao objetivo número 7? Quero minha própria casa em Madri com um escritório, pra poder colocar minha lousa bem grande com meus objetivos! Hahaha. A Mãe ainda não me deixa colocar uma lousa na casa dela!
“Não tem espaço pra isso, Endrick! Simples assim!” Você sabe como ela é. Temos que ouvir e respeitar. Na verdade, eu tinha outro objetivo, mas não vou numerar aqui, porque já foi alcançado. Esse objetivo é que você viva a vida que desejar, seja ela qual for.
Durante três gerações, ou talvez mais, a nossa família teve que perseguir o sonho do futebol, tentado mudar nossas condições. Mas agora você pode fazer o que você quiser. Você pode ser médico ou advogado, ou talvez, já que vamos para a Espanha, no país de Nadal e Alcaraz, você pode se tornar um tenista profissional. Você já está correndo atrás da bola, como eu. Então você pode ser jogador de futebol, se quiser. Mas você não tem que ser. Não há mais estresse, graças a Deus, graças à Mãe e ao Pai, e graças ao futebol.
Quero que você aproveite sua vida como quiser, irmão. É o meu presente pra você. E agora é aqui que esta carta termina e o futuro começa. Veja bem, as pessoas me perguntam o tempo todo sobre o Real Madrid e a Seleção Brasileira e como acho que será minha carreira. Mas você sabe qual é a real? Eu simplesmente não sei.
Na vida, não sabemos como será o dia de amanhã. Não sabemos se teremos um amanhã. Tudo o que podemos fazer é agradecer a Deus por tudo que Ele nos deu. Espero que você entenda, irmão. A vida que estamos vivendo agora não surgiu do nada. Foi conquistada, com muito trabalho e muitas lágrimas. Mamãe sempre diz que um único erro pode fazer com que tudo desmorone, e ela está certa.
No momento em que esquecemos de onde viemos, corremos o risco de nos perdermos. É por isso que estou te dando como presente a história da nossa família. A Mãe comendo a broinha de milho velha. O Pai dormindo embaixo da bilheteria. A Mãe chorando no banheiro. O Pai chorando no sofá. Que você sempre guarde isso em seu coração. Te amo, Mano. Do fundo do meu coração, Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.
Endrick, jogador do Palmeiras que tem se destacado também na seleção brasileira, vem chamando atenção do mundo pelo futebol, inclusive sendo previamente contratado pelo Real Madrid assim que completar 18 anos de idade.
O atleta, que disputa neste domingo a final do campeonato Paulista, contra o Santos, a partir das 18h, emocionou muita gente também fora de campo ao dedicar uma carta ao irmão mais novo, Noah, de 4 anos.
Leia a carta de Endrick para o irmão na íntegra
Querido Noah, Eu te amo. Esta é a primeira coisa, acima de tudo. Desde o primeiro dia, sinto que temos uma ligação muito especial. Eu nunca te contei isso, mas, no dia do seu nascimento, parece que você só estava esperando eu marcar um gol para nascer.
É verdade, irmão. Eu estava jogando uma partida importante na época, tinha apenas 13 anos, e você não queria sair da barriga da mamãe. O relógio fazia tic-tac-tic-tac sem parar, e mamãe e papai se perguntavam o que você estava esperando. Então, de repente, o Pai recebeu uma ligação de seu amigo que estava no jogo.
Ele disse: “Douglas!! Douglas!! Endrick acabou de fazer um gol!!”. E então, naquele exato momento, tudo que se ouviu no quarto do hospital foi Wwwwwwaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!! Você finalmente saiu para comemorar comigo. Quando cheguei ao hospital, te dei um presente de aniversário. Eu não tinha dinheiro para comprar um brinquedo, mas levei pra você a bola de ouro que ganhei do torneio.
Viu só? Na nossa família, não nascemos em berço de ouro. Nascemos no berço do futebol. Não sei quando você vai ler esta carta, mas agora você tem quatro anos, e nossas vidas estão mudando muito rápido. Nos próximos meses, vou para a Espanha jogar pelo Real Madrid — sim, o time que eu sempre escolho no PlayStation quando você me assiste jogando. Eu sei que o mundo vai querer saber sobre a história da nossa família. E é uma história maluca, irmão! Então esta é minha chance de te contar como tudo realmente aconteceu, e com a Mãe e o Pai aqui para me ajudar.
Como você sabe, na nossa família tudo sempre começa e termina com a bola. A Mãe diz que, quando eu era um bebê, nunca fiz vvvrrooooom!!! como você. Se me dessem um brinquedo, eu ficaria com ele cinco segundos e depois colocava de volta na caixa. Tudo que eu queria era “bola, bola, bola”.
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Uma bola de fita. Uma bola de meia. Uma bola de basquete. Pouco importava. Se fosse redonda ou até mesmo quadrada, eu queria mesmo é sair chutando. Quando ganhei a bola da Copa de 2014, a Brazuca, do time do pai na várzea, eu ficava só olhando as cores, como se fosse uma pintura. Eu dormia abraçado com ela! Está no sangue, irmão.
Pode perguntar pra Mãe como eu me apresentava pras pessoas. “E qual é o seu nome, moleque?” “Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.” As pessoas riam de mim, tá ligado? “Que criança mais fofa”. Mas, irmão, eu tava falando sério. Eu tinha certeza que conseguiria, e a nossa Mãe ainda chora quando se lembra disso. Ela sempre disse que as palavras têm poder.
Naquela época, a gente não morava em um apartamento chique como agora. Não tinha geladeira cheia dos iogurtes que você tanto ama. A gente vivia no alto do morro, num lugar chamado Vila Guaíra, e a vida era diferente. Você vai ouvir todo tipo de história sobre a gente vindo de outras pessoas nos próximos anos, e até vão dizer que tudo foi “dor e sofrimento”. Mas a verdade é que eu tive uma infância incrível, graças a Deus, e graças a tudo que a Mãe e o Pai fizeram por mim. E graças ao futebol, claro.
Acho que nunca te contei isso, mas quando eu tinha mais ou menos a sua idade, nossa rua ficava nesse morro. A gente jogava futebol lá com todo o pessoal do bairro, e um dos motivos que fazia a gente ser tão bom é que, se a bola rolasse ladeira abaixo, quem perdia o gol tinha de ir até a favela lá embaixo para buscar. Tipo, o moleque corria, passava por um jogador e, se perdesse o gol, tinha que correr ainda mais pra pegar a bola antes de ela chegar lá embaixo. Era cansativo, mas as regras na rua são muito claras. Quem chuta, busca!
Tenho muitas saudades daquela época, quando eu era apenas uma criança e o futebol, só um jogo. Quando os amigos ficavam sentados, batendo papo… É resenha que fala, né? Eu realmente gostaria que a gente pudesse ter vivido esse tempo juntos, irmão. Quando penso nisso, fico feliz e triste ao mesmo tempo. Boas lembranças de um tempo que eu sei que não vai voltar, sabe? Até mesmo as lembranças ruins, às vezes, são doces.
Quando você crescer, vai ouvir a história da “conversa no sofá”. Tem um monte de gente que já fala sobre isso no Brasil, mas eles não entenderam a história. Eles falam que éramos pobres e que não tínhamos o que comer, mas isso não é verdade. Eles não conhecem nossa Mãe. Como ela mesmo diz: “Eu sou muito mulher pra deixar comida faltar pros meus filhos”.
A verdade é que aquele dia no sofá eu vi nosso pai chorar. Acho que foi a primeira vez na minha vida que entendi que a nossa situação não era fácil. Nós sempre tivemos o essencial na nossa mesa. Mas nem sempre tínhamos o suficiente para tudo que queríamos. Entende a diferença?
A gente sempre vivia no limite. O Pai conta que eu sentei no sofá e disse a ele: “Não se preocupe. Com o futebol, vou dar uma vida melhor pra gente.” Antes daquele dia, eu era só uma criança e o futebol, apenas um jogo. Depois daquele dia, o futebol se transformou no caminho para uma vida melhor.
Algumas semanas depois, fui pra São Paulo para treinar na Academia do Palmeiras e anotei meu primeiro objetivo: “Melhorar a situação da nossa família”. Colocar objetivos é algo importante da minha vida. É a minha maneira de conversar com Deus. Quando fui para o Palmeiras, sabia que faria pelo menos 2 a 3 refeições por dia na escola e no treinamento. Mas para a Mãe, infelizmente, não foi tão simples…
Ela deixou sua vida pra trás para apoiar meu sonho em São Paulo. O clube só tinha espaço para mim, mas ela disse que não tinha como eu ir sem ela. O Pai ficou em Brasilia, trabalhando para mandar dinheiro pra gente, enquanto ela foi morar comigo em uma casinha junto com alguns dos meus companheiros. Todos debaixo do mesmo teto. Mas quando a gente ia treinar, a Mãe não tinha com quem conversar. Não tinha TV nem internet em casa, então, ela levava a Bíblia para o parque, sentava e falava sozinha com Deus. A única coisa que ela possuía na casa era uma cadeira. Ela deixava a bolsa em cima dela e, quando a gente ia pra cama, ela dormia um pouco no colchão que ficava no chão.
Eu sei que é difícil para você imaginar a mamãe dormindo no chão, mas esta é a verdade. Foi assim que aconteceu. Às vezes, a Mãe estava literalmente contando os últimos trocados. O Pai continuava mandando dinheiro, mas naquela época não tinha o Pix, então, o dinheiro demorava um ou dois dias para cair na conta. Nos dias bons, quando o dinheiro rendia, a Mãe cozinhava linguiça para os outros meninos. Mas na maioria dos dias, só dava pra gente mesmo comer, e ela se sentia muito culpada fazendo comida em casa, porque os meninos sentiam o cheiro da carne cozinhando, e eles perguntavam se tinha alguma pra eles também….. O que ela poderia dizer? Não sobrava nada.
Na verdade, foi tão doloroso que ela até parou de cozinhar. Lembro que teve momentos em que eu estava meio com fome, pouco antes de dormir, sabe? Tipo, eu podia comer. Então, eu perguntava pra Mãe se tinha alguma coisa e ela dizia: “Vai dormir, Endrick, que a fome passa”.
Outras vezes, quando a gente estava desesperado por dinheiro, a Mãe conseguia pedir emprestado arroz ou mesmo algum trocado. Mas um dia, irmão… Ela não tinha mais para quem pedir. Estava sem dinheiro e sem ter a quem recorrer. Ela ligou para o Pai e disse: “Douglas, estou com fome… Não sei o que fazer”.
O Pai mandou 50 reais, mas o dinheiro só ficaria disponível no dia seguinte. Ela se ajoelhou e orou a Deus pedindo ajuda. Então, ela pegou a bolsa na cadeira e começou a revirar, cavando até o fundo. Ela achou 2 reais, irmão. Trocados perdidos. Um presente de Deus.
Ela foi ao supermercado e comprou broinha de milho de dois dias. E se você perguntar a ela agora, ela vai te dizer que o sabor estava maravilhoso. A Mãe fala que a fome traz uma sensação muito estranha. Faz com que até broinha de milho de dois dias tenha o melhor gosto do mundo.
Para ser sincero, gostaria de não ter que te contar isso, porque a fome não é uma coisa boa. Espero que você nunca experimente isso, como mamãe passou. Mas é uma parte importante da nossa história. Na próxima vez que você encontrar com ela, dá um abraço forte e agradeça, porque sem os sacrifícios dela não teríamos a vida que temos hoje.
Na verdade, nem mesmo eu conhecia essas histórias até bem pouco tempo atrás, porque a Mãe sempre escondia sua dor para proteger meu sonho. Eu nunca vi a Mãe chorar. Ela costumava entrar no banheiro para eu não perceber. Mas a Mãe telefonava para o Pai muitas vezes, dizendo que não aguentava mais, que queria voltar pra casa, só que aí eu voltava dos treinos contando histórias sobre o que aconteceu naquele dia, e os gols que marcamos… E ela via meus olhos brilhando. Então ela ficou. Por mim. Pela nossa família.
Essa é a nossa Mãe, sempre fazendo o que é necessário. Às vezes, ela é a sargento, aquela que briga e grita, dizendo as coisas que precisamos, mas não queremos ouvir. E outras vezes ela nos abraça e prepara as melhores omeletes do planeta. O que quer que ela faça, lembre-se de que é tudo por um motivo simples. Ela sempre quer o que é melhor para nós.
O Pai também se sacrificou muito. Depois de alguns meses, ele veio para São Paulo nos apoiar e foi até o Palmeiras, pedindo ao clube um emprego onde fosse possível. Eles só tinham uma vaga. O Pai começou a trabalhar na equipe de limpeza, dentro do estádio. Ele sempre sonhou em estar em um ambiente de vestiário quando era menino, então, ele ia trabalhar com um sorriso no rosto. Ele ficou lá por três anos, primeiro catando lixo no estádio e depois sendo promovido para limpar o vestiário do time titular. Ele dizia para os jogadores que um dia seu filho jogaria com eles.
Certo dia, o goleiro Jailson percebeu que o Pai estava ficando cada vez mais magro. No refeitório, a equipe de limpeza e o pessoal comiam com os jogadores, e ele viu que o Pai estava apenas tomando sopa. Então, ele colocou o braço em volta do Pai e disse: “Ei, Douglas, me dá seu telefone que eu quero ligar para sua esposa”. Daí o Pai falou: “Minha esposa? Não é assim não, Jailson! O que você quer com minha esposa???”. Jailson, então, disse: “Não, não, quero que ela me conte o que está acontecendo com você, que nunca come nada. Você está bem?”.
O Pai ficou com vergonha de explicar o que estava acontecendo, então, ligou para a mamãe, e ela contou para o Jailson o que realmente estava acontecendo. História real. Como o Pai queimou a mão quando era criança em um churrasco, e a coisa foi tão séria que ele quase perdeu a mão. Os médicos deram remédios fortes para combater a infecção, e isso enfraqueceu seus dentes. Na época em que ele trabalhava no Palmeiras, todos os dentes estavam caindo. Ele só podia tomar sopa.
Então o Jailson saiu fazendo uma vaquinha com todos os jogadores e eles surpreenderam o papai com dinheiro para ele consertar os dentes. Deus trabalha de maneiras incríveis, irmão. O Pai costumava falar: “Meu sonho é morder uma maçã”. Hoje, graças a Deus, ele pode morder a comida que quiser.
Naquela época, meu segundo objetivo também foi alcançado. A gente se mudou para um apartamento em cima de uma casa lotérica bem ao lado do estádio do Palmeiras. Eu podia olhar pela janela e ver meu sonho todas as manhãs quando acordava e todas as noites quando ia dormir. Era lindo. Opa, espera, que eu esqueci de contar a história completa do Pai…
A Mãe é nossa rocha e o Pai, nosso “pacero”. Sempre foi assim. Mas tem muito mais da história dele que você não sabe. Se você acha que foi difícil pra mim, você está errado. Eu nasci em berço de ouro comparado ao Pai. Quando era menino, nosso avô não esteve tão perto dele. O futebol também era uma saída para o nosso Pai. Quando ele tinha 15 anos, ele saiu de casa e foi andando pela estrada de Brasília a São Paulo. Andando! Durante boa parte do caminho… É muito longe, irmão. E ele nem contou pra Mãe dele! Nessa viagem, ele carregou a vida inteira nas costas: um par de chuteiras, duas garrafas de 2 litros – uma com água, outra com água misturada com Tang – e alguns pães. O plano dele era fazer testes em todos os clubes da cidade. Isso demorou uma semana inteira, ele andava e pegava carona na estrada.
Quando finalmente chegou a São Paulo, não tinha dinheiro, e nem para onde ir, então, ele ficava andando e batendo nas portas dos clubes perguntando quando aconteceriam as peneiras. Alguém do São Paulo FC viu que ele estava passando dificuldades e deu pra ele um pouco de comida da cantina. Numa das noites mais frias, uma senhora de uma instituição de caridade viu que ele estava dormindo debaixo de uma árvore em um parque e chamou o Pai para ficar em um abrigo. O lugar estava tão aconchegante, e já fazia mais de três noites que ele não deitava em uma cama, que o Pai dormiu demais e perdeu a peneira do Nacional Atlético Clube no dia seguinte.
Você pode imaginar o tanto que o Pai devia estar cansado? Você pode imaginar passar uma semana caminhando para ir atrás do seu sonho, para fazer uma peneira… e você acaba perdendo a oportunidade? Quando ele me contou, irmão, eu não sabia se ria ou chorava.
Teve outra noite em que estava chovendo e o Pai não tinha para onde ir, então, ele foi andando até o estádio do Palmeiras e dormiu embaixo do teto da bilheteria. Ele não conseguiu realizar seu sonho, mas deu tudo de si.
Quando voltou para Brasília, jogou na várzea para se sustentar. Você sabe como é a várzea, né? Não tem salário, irmão. É só paixão. Eles jogam por uma “ajuda de custo”, quando dá tudo certo. O Pai jogava pela conta de luz ou por um saco de arroz. Quando era criança, eu acompanhava o Pai em todas as partidas e ficava chutando a bola no cantinho do campo. Na hora do intervalo, eles ficavam tocando música e todo mundo festejava, eu entrava em campo pra brincar e ganhar umas apostas. (Cara, por que você acha que eu fico cantando sozinho quando estou jogando?)
O pai me via depois dos jogos e perguntava: “Endrick, como é que você conseguiu esta Coca-Cola, parceiro? Você não está pegando de alguém, está?”. Eu respondia: “Não, não, eu acertei um chute na trave e o Dudu ali ganhou 10 reais. Ele me comprou uma Coca-Cola porque eu ajudei ele a ganhar uma aposta. Se eu acertar de novo, ele vai me comprar um espetinho de carne!”
Esse era o meu corre! A Mãe dizia que eu chegava em casa com as pernas todas cinza depois de brincar no barro por tanto tempo. Você sabe como é a terra cinzenta do Brasil. Espero que você ainda se lembre disso. A Mãe tinha que me lavar como se eu fosse um pet. Assim que ficava limpo, pssshhewww — eu já saía como um foguete pra brincar. (Lembra do que eu disse? Nasci no futebol.). Futebol não foi apenas o meu sonho, mas o sonho do nosso Pai, do nosso avô, o sonho de toda família.
Você acha que quando papai estava dormindo embaixo da bilheteria do estádio do Palmeiras, ele teria sonhado que seu filho jogaria lá um dia?
Quando eu tinha 15 anos e me tornei profissional no Palmeiras, posso dizer honestamente que alcancei tudo que eu sempre quis na minha vida, graças a Deus. Consegui comprar uma casa pra mamãe e tirar nossas duas avós de Chaparral, que era perigoso. Depois daquela conversa que tive com o Pai no sofá, eu sabia que agora tinha alcançado meu primeiro objetivo: ajudar minha família a ter uma vida melhor.
Que momento! Mas também… cara… que alívio. Quando você era bebezinho, já vivíamos uma vida muito diferente, e a nossa vida vai continuar mudando nos próximos anos.
Dentro de alguns meses partirei para a Espanha e você vem comigo. Real Madrid…. Esse era o meu terceiro objetivo e foi o único que nunca ousei escrever. Quando era pequeno, eu não tinha celular ou qualquer coisa, então eu costumava pegar emprestado o computador da mamãe e assistir aos melhores momentos dos jogos do Real Madrid, desde os 7 ou 8 anos. Eu sei que você é muito jovem para lembrar desses nomes, mas eu estava obcecado com aquela equipe de 2013-14 com Cristiano, Modric e Benzema. Essa foi minha porta de entrada na história do clube. Comecei a entrar no YouTube e aprender sobre o Galácticos e depois cada vez mais fundo — Puskás, Di Stéfano… Pode acreditar, em Madri, você vai ouvir falar mais sobre esses craques.
Você pode aprender qualquer coisa no YouTube. É mais ou menos como uma universidade. Mais do que ninguém, eu assisti Cristiano. Não apenas os melhores momentos, mas também o quanto ele se dedicou e o que outros diziam sobre sua mentalidade. Com ele, aprendi que o trabalho duro é até mais importante que o talento.
Espero que possa conhecer o Cristiano um dia. Enquanto escrevo estas palavras, isso ainda não aconteceu. Mas o filho dele me segue no Instagram, então, espero que no momento em que você estiver lendo este texto, eu já tenha conseguido apertar a mão dele. Se Deus quiser, vai correr tudo bem no Real Madrid e na minha carreira, e o Cristiano vai me seguir! Talvez você e eu! Hahaha. Conhecer Cristiano Ronaldo. Esse é o objetivo número 4. A meta número 5 é que o resto desta temporada com o Palmeiras termine bem, com o nosso time vencendo o Paulistão mais uma vez.
O objetivo número 6… Na verdade, tenho uma história engraçada sobre isso. Quando fui visitar o Real Madrid pela primeira vez há alguns meses, muitas coisas incríveis aconteceram. Quando conhecemos Florentino Pérez, ele olhou nos olhos do Pai e disse: “O Real Madrid será o único clube que tratará Endrick como um filho.” Isso foi muito impactante pro Pai.
Conheci o Bellingham, aquele cara muito bom que sempre marca para mim no PlayStation, e todo mundo o chama de Jude, então eu disse a ele: “Ei, Jude, no meu próximo gol, vou fazer sua comemoração.” Quando marquei, mandei o vídeo para ele no Instagram e ele repostou.
Até recebi alguns conselhos do Ronaldo Fenômeno. Tudo aconteceu muito rápido, como se eu estivesse em um sonho. Mas o que mais me lembro é quando entrei no vestiário e o Modric falou comigo. A camisa 10 estava pendurada e ele apontou para o assento ao lado ele e disse: “Número 9 e Número 10. Quem sabe… na próxima temporada, talvez você se sente do meu lado”.
Isso mexeu comigo, de verdade. Eu pensei: Cara, se o Modric acredita que sou digno de usar a número 9, então devo ser pra valer mesmo! Ainda não cheguei a Madri, por isso não sei, mas espero um dia usar a 9 do Real Madrid. E quanto ao objetivo número 7? Quero minha própria casa em Madri com um escritório, pra poder colocar minha lousa bem grande com meus objetivos! Hahaha. A Mãe ainda não me deixa colocar uma lousa na casa dela!
“Não tem espaço pra isso, Endrick! Simples assim!” Você sabe como ela é. Temos que ouvir e respeitar. Na verdade, eu tinha outro objetivo, mas não vou numerar aqui, porque já foi alcançado. Esse objetivo é que você viva a vida que desejar, seja ela qual for.
Durante três gerações, ou talvez mais, a nossa família teve que perseguir o sonho do futebol, tentado mudar nossas condições. Mas agora você pode fazer o que você quiser. Você pode ser médico ou advogado, ou talvez, já que vamos para a Espanha, no país de Nadal e Alcaraz, você pode se tornar um tenista profissional. Você já está correndo atrás da bola, como eu. Então você pode ser jogador de futebol, se quiser. Mas você não tem que ser. Não há mais estresse, graças a Deus, graças à Mãe e ao Pai, e graças ao futebol.
Quero que você aproveite sua vida como quiser, irmão. É o meu presente pra você. E agora é aqui que esta carta termina e o futuro começa. Veja bem, as pessoas me perguntam o tempo todo sobre o Real Madrid e a Seleção Brasileira e como acho que será minha carreira. Mas você sabe qual é a real? Eu simplesmente não sei.
Na vida, não sabemos como será o dia de amanhã. Não sabemos se teremos um amanhã. Tudo o que podemos fazer é agradecer a Deus por tudo que Ele nos deu. Espero que você entenda, irmão. A vida que estamos vivendo agora não surgiu do nada. Foi conquistada, com muito trabalho e muitas lágrimas. Mamãe sempre diz que um único erro pode fazer com que tudo desmorone, e ela está certa.
No momento em que esquecemos de onde viemos, corremos o risco de nos perdermos. É por isso que estou te dando como presente a história da nossa família. A Mãe comendo a broinha de milho velha. O Pai dormindo embaixo da bilheteria. A Mãe chorando no banheiro. O Pai chorando no sofá. Que você sempre guarde isso em seu coração. Te amo, Mano. Do fundo do meu coração, Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.
Endrick, jogador do Palmeiras que tem se destacado também na seleção brasileira, vem chamando atenção do mundo pelo futebol, inclusive sendo previamente contratado pelo Real Madrid assim que completar 18 anos de idade.
O atleta, que disputa neste domingo a final do campeonato Paulista, contra o Santos, a partir das 18h, emocionou muita gente também fora de campo ao dedicar uma carta ao irmão mais novo, Noah, de 4 anos.
Leia a carta de Endrick para o irmão na íntegra
Querido Noah, Eu te amo. Esta é a primeira coisa, acima de tudo. Desde o primeiro dia, sinto que temos uma ligação muito especial. Eu nunca te contei isso, mas, no dia do seu nascimento, parece que você só estava esperando eu marcar um gol para nascer.
É verdade, irmão. Eu estava jogando uma partida importante na época, tinha apenas 13 anos, e você não queria sair da barriga da mamãe. O relógio fazia tic-tac-tic-tac sem parar, e mamãe e papai se perguntavam o que você estava esperando. Então, de repente, o Pai recebeu uma ligação de seu amigo que estava no jogo.
Ele disse: “Douglas!! Douglas!! Endrick acabou de fazer um gol!!”. E então, naquele exato momento, tudo que se ouviu no quarto do hospital foi Wwwwwwaaaaaahhhhhhhhhhh!!!!!!!!! Você finalmente saiu para comemorar comigo. Quando cheguei ao hospital, te dei um presente de aniversário. Eu não tinha dinheiro para comprar um brinquedo, mas levei pra você a bola de ouro que ganhei do torneio.
Viu só? Na nossa família, não nascemos em berço de ouro. Nascemos no berço do futebol. Não sei quando você vai ler esta carta, mas agora você tem quatro anos, e nossas vidas estão mudando muito rápido. Nos próximos meses, vou para a Espanha jogar pelo Real Madrid — sim, o time que eu sempre escolho no PlayStation quando você me assiste jogando. Eu sei que o mundo vai querer saber sobre a história da nossa família. E é uma história maluca, irmão! Então esta é minha chance de te contar como tudo realmente aconteceu, e com a Mãe e o Pai aqui para me ajudar.
Como você sabe, na nossa família tudo sempre começa e termina com a bola. A Mãe diz que, quando eu era um bebê, nunca fiz vvvrrooooom!!! como você. Se me dessem um brinquedo, eu ficaria com ele cinco segundos e depois colocava de volta na caixa. Tudo que eu queria era “bola, bola, bola”.
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Uma bola de fita. Uma bola de meia. Uma bola de basquete. Pouco importava. Se fosse redonda ou até mesmo quadrada, eu queria mesmo é sair chutando. Quando ganhei a bola da Copa de 2014, a Brazuca, do time do pai na várzea, eu ficava só olhando as cores, como se fosse uma pintura. Eu dormia abraçado com ela! Está no sangue, irmão.
Pode perguntar pra Mãe como eu me apresentava pras pessoas. “E qual é o seu nome, moleque?” “Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.” As pessoas riam de mim, tá ligado? “Que criança mais fofa”. Mas, irmão, eu tava falando sério. Eu tinha certeza que conseguiria, e a nossa Mãe ainda chora quando se lembra disso. Ela sempre disse que as palavras têm poder.
Naquela época, a gente não morava em um apartamento chique como agora. Não tinha geladeira cheia dos iogurtes que você tanto ama. A gente vivia no alto do morro, num lugar chamado Vila Guaíra, e a vida era diferente. Você vai ouvir todo tipo de história sobre a gente vindo de outras pessoas nos próximos anos, e até vão dizer que tudo foi “dor e sofrimento”. Mas a verdade é que eu tive uma infância incrível, graças a Deus, e graças a tudo que a Mãe e o Pai fizeram por mim. E graças ao futebol, claro.
Acho que nunca te contei isso, mas quando eu tinha mais ou menos a sua idade, nossa rua ficava nesse morro. A gente jogava futebol lá com todo o pessoal do bairro, e um dos motivos que fazia a gente ser tão bom é que, se a bola rolasse ladeira abaixo, quem perdia o gol tinha de ir até a favela lá embaixo para buscar. Tipo, o moleque corria, passava por um jogador e, se perdesse o gol, tinha que correr ainda mais pra pegar a bola antes de ela chegar lá embaixo. Era cansativo, mas as regras na rua são muito claras. Quem chuta, busca!
Tenho muitas saudades daquela época, quando eu era apenas uma criança e o futebol, só um jogo. Quando os amigos ficavam sentados, batendo papo… É resenha que fala, né? Eu realmente gostaria que a gente pudesse ter vivido esse tempo juntos, irmão. Quando penso nisso, fico feliz e triste ao mesmo tempo. Boas lembranças de um tempo que eu sei que não vai voltar, sabe? Até mesmo as lembranças ruins, às vezes, são doces.
Quando você crescer, vai ouvir a história da “conversa no sofá”. Tem um monte de gente que já fala sobre isso no Brasil, mas eles não entenderam a história. Eles falam que éramos pobres e que não tínhamos o que comer, mas isso não é verdade. Eles não conhecem nossa Mãe. Como ela mesmo diz: “Eu sou muito mulher pra deixar comida faltar pros meus filhos”.
A verdade é que aquele dia no sofá eu vi nosso pai chorar. Acho que foi a primeira vez na minha vida que entendi que a nossa situação não era fácil. Nós sempre tivemos o essencial na nossa mesa. Mas nem sempre tínhamos o suficiente para tudo que queríamos. Entende a diferença?
A gente sempre vivia no limite. O Pai conta que eu sentei no sofá e disse a ele: “Não se preocupe. Com o futebol, vou dar uma vida melhor pra gente.” Antes daquele dia, eu era só uma criança e o futebol, apenas um jogo. Depois daquele dia, o futebol se transformou no caminho para uma vida melhor.
Algumas semanas depois, fui pra São Paulo para treinar na Academia do Palmeiras e anotei meu primeiro objetivo: “Melhorar a situação da nossa família”. Colocar objetivos é algo importante da minha vida. É a minha maneira de conversar com Deus. Quando fui para o Palmeiras, sabia que faria pelo menos 2 a 3 refeições por dia na escola e no treinamento. Mas para a Mãe, infelizmente, não foi tão simples…
Ela deixou sua vida pra trás para apoiar meu sonho em São Paulo. O clube só tinha espaço para mim, mas ela disse que não tinha como eu ir sem ela. O Pai ficou em Brasilia, trabalhando para mandar dinheiro pra gente, enquanto ela foi morar comigo em uma casinha junto com alguns dos meus companheiros. Todos debaixo do mesmo teto. Mas quando a gente ia treinar, a Mãe não tinha com quem conversar. Não tinha TV nem internet em casa, então, ela levava a Bíblia para o parque, sentava e falava sozinha com Deus. A única coisa que ela possuía na casa era uma cadeira. Ela deixava a bolsa em cima dela e, quando a gente ia pra cama, ela dormia um pouco no colchão que ficava no chão.
Eu sei que é difícil para você imaginar a mamãe dormindo no chão, mas esta é a verdade. Foi assim que aconteceu. Às vezes, a Mãe estava literalmente contando os últimos trocados. O Pai continuava mandando dinheiro, mas naquela época não tinha o Pix, então, o dinheiro demorava um ou dois dias para cair na conta. Nos dias bons, quando o dinheiro rendia, a Mãe cozinhava linguiça para os outros meninos. Mas na maioria dos dias, só dava pra gente mesmo comer, e ela se sentia muito culpada fazendo comida em casa, porque os meninos sentiam o cheiro da carne cozinhando, e eles perguntavam se tinha alguma pra eles também….. O que ela poderia dizer? Não sobrava nada.
Na verdade, foi tão doloroso que ela até parou de cozinhar. Lembro que teve momentos em que eu estava meio com fome, pouco antes de dormir, sabe? Tipo, eu podia comer. Então, eu perguntava pra Mãe se tinha alguma coisa e ela dizia: “Vai dormir, Endrick, que a fome passa”.
Outras vezes, quando a gente estava desesperado por dinheiro, a Mãe conseguia pedir emprestado arroz ou mesmo algum trocado. Mas um dia, irmão… Ela não tinha mais para quem pedir. Estava sem dinheiro e sem ter a quem recorrer. Ela ligou para o Pai e disse: “Douglas, estou com fome… Não sei o que fazer”.
O Pai mandou 50 reais, mas o dinheiro só ficaria disponível no dia seguinte. Ela se ajoelhou e orou a Deus pedindo ajuda. Então, ela pegou a bolsa na cadeira e começou a revirar, cavando até o fundo. Ela achou 2 reais, irmão. Trocados perdidos. Um presente de Deus.
Ela foi ao supermercado e comprou broinha de milho de dois dias. E se você perguntar a ela agora, ela vai te dizer que o sabor estava maravilhoso. A Mãe fala que a fome traz uma sensação muito estranha. Faz com que até broinha de milho de dois dias tenha o melhor gosto do mundo.
Para ser sincero, gostaria de não ter que te contar isso, porque a fome não é uma coisa boa. Espero que você nunca experimente isso, como mamãe passou. Mas é uma parte importante da nossa história. Na próxima vez que você encontrar com ela, dá um abraço forte e agradeça, porque sem os sacrifícios dela não teríamos a vida que temos hoje.
Na verdade, nem mesmo eu conhecia essas histórias até bem pouco tempo atrás, porque a Mãe sempre escondia sua dor para proteger meu sonho. Eu nunca vi a Mãe chorar. Ela costumava entrar no banheiro para eu não perceber. Mas a Mãe telefonava para o Pai muitas vezes, dizendo que não aguentava mais, que queria voltar pra casa, só que aí eu voltava dos treinos contando histórias sobre o que aconteceu naquele dia, e os gols que marcamos… E ela via meus olhos brilhando. Então ela ficou. Por mim. Pela nossa família.
Essa é a nossa Mãe, sempre fazendo o que é necessário. Às vezes, ela é a sargento, aquela que briga e grita, dizendo as coisas que precisamos, mas não queremos ouvir. E outras vezes ela nos abraça e prepara as melhores omeletes do planeta. O que quer que ela faça, lembre-se de que é tudo por um motivo simples. Ela sempre quer o que é melhor para nós.
O Pai também se sacrificou muito. Depois de alguns meses, ele veio para São Paulo nos apoiar e foi até o Palmeiras, pedindo ao clube um emprego onde fosse possível. Eles só tinham uma vaga. O Pai começou a trabalhar na equipe de limpeza, dentro do estádio. Ele sempre sonhou em estar em um ambiente de vestiário quando era menino, então, ele ia trabalhar com um sorriso no rosto. Ele ficou lá por três anos, primeiro catando lixo no estádio e depois sendo promovido para limpar o vestiário do time titular. Ele dizia para os jogadores que um dia seu filho jogaria com eles.
Certo dia, o goleiro Jailson percebeu que o Pai estava ficando cada vez mais magro. No refeitório, a equipe de limpeza e o pessoal comiam com os jogadores, e ele viu que o Pai estava apenas tomando sopa. Então, ele colocou o braço em volta do Pai e disse: “Ei, Douglas, me dá seu telefone que eu quero ligar para sua esposa”. Daí o Pai falou: “Minha esposa? Não é assim não, Jailson! O que você quer com minha esposa???”. Jailson, então, disse: “Não, não, quero que ela me conte o que está acontecendo com você, que nunca come nada. Você está bem?”.
O Pai ficou com vergonha de explicar o que estava acontecendo, então, ligou para a mamãe, e ela contou para o Jailson o que realmente estava acontecendo. História real. Como o Pai queimou a mão quando era criança em um churrasco, e a coisa foi tão séria que ele quase perdeu a mão. Os médicos deram remédios fortes para combater a infecção, e isso enfraqueceu seus dentes. Na época em que ele trabalhava no Palmeiras, todos os dentes estavam caindo. Ele só podia tomar sopa.
Então o Jailson saiu fazendo uma vaquinha com todos os jogadores e eles surpreenderam o papai com dinheiro para ele consertar os dentes. Deus trabalha de maneiras incríveis, irmão. O Pai costumava falar: “Meu sonho é morder uma maçã”. Hoje, graças a Deus, ele pode morder a comida que quiser.
Naquela época, meu segundo objetivo também foi alcançado. A gente se mudou para um apartamento em cima de uma casa lotérica bem ao lado do estádio do Palmeiras. Eu podia olhar pela janela e ver meu sonho todas as manhãs quando acordava e todas as noites quando ia dormir. Era lindo. Opa, espera, que eu esqueci de contar a história completa do Pai…
A Mãe é nossa rocha e o Pai, nosso “pacero”. Sempre foi assim. Mas tem muito mais da história dele que você não sabe. Se você acha que foi difícil pra mim, você está errado. Eu nasci em berço de ouro comparado ao Pai. Quando era menino, nosso avô não esteve tão perto dele. O futebol também era uma saída para o nosso Pai. Quando ele tinha 15 anos, ele saiu de casa e foi andando pela estrada de Brasília a São Paulo. Andando! Durante boa parte do caminho… É muito longe, irmão. E ele nem contou pra Mãe dele! Nessa viagem, ele carregou a vida inteira nas costas: um par de chuteiras, duas garrafas de 2 litros – uma com água, outra com água misturada com Tang – e alguns pães. O plano dele era fazer testes em todos os clubes da cidade. Isso demorou uma semana inteira, ele andava e pegava carona na estrada.
Quando finalmente chegou a São Paulo, não tinha dinheiro, e nem para onde ir, então, ele ficava andando e batendo nas portas dos clubes perguntando quando aconteceriam as peneiras. Alguém do São Paulo FC viu que ele estava passando dificuldades e deu pra ele um pouco de comida da cantina. Numa das noites mais frias, uma senhora de uma instituição de caridade viu que ele estava dormindo debaixo de uma árvore em um parque e chamou o Pai para ficar em um abrigo. O lugar estava tão aconchegante, e já fazia mais de três noites que ele não deitava em uma cama, que o Pai dormiu demais e perdeu a peneira do Nacional Atlético Clube no dia seguinte.
Você pode imaginar o tanto que o Pai devia estar cansado? Você pode imaginar passar uma semana caminhando para ir atrás do seu sonho, para fazer uma peneira… e você acaba perdendo a oportunidade? Quando ele me contou, irmão, eu não sabia se ria ou chorava.
Teve outra noite em que estava chovendo e o Pai não tinha para onde ir, então, ele foi andando até o estádio do Palmeiras e dormiu embaixo do teto da bilheteria. Ele não conseguiu realizar seu sonho, mas deu tudo de si.
Quando voltou para Brasília, jogou na várzea para se sustentar. Você sabe como é a várzea, né? Não tem salário, irmão. É só paixão. Eles jogam por uma “ajuda de custo”, quando dá tudo certo. O Pai jogava pela conta de luz ou por um saco de arroz. Quando era criança, eu acompanhava o Pai em todas as partidas e ficava chutando a bola no cantinho do campo. Na hora do intervalo, eles ficavam tocando música e todo mundo festejava, eu entrava em campo pra brincar e ganhar umas apostas. (Cara, por que você acha que eu fico cantando sozinho quando estou jogando?)
O pai me via depois dos jogos e perguntava: “Endrick, como é que você conseguiu esta Coca-Cola, parceiro? Você não está pegando de alguém, está?”. Eu respondia: “Não, não, eu acertei um chute na trave e o Dudu ali ganhou 10 reais. Ele me comprou uma Coca-Cola porque eu ajudei ele a ganhar uma aposta. Se eu acertar de novo, ele vai me comprar um espetinho de carne!”
Esse era o meu corre! A Mãe dizia que eu chegava em casa com as pernas todas cinza depois de brincar no barro por tanto tempo. Você sabe como é a terra cinzenta do Brasil. Espero que você ainda se lembre disso. A Mãe tinha que me lavar como se eu fosse um pet. Assim que ficava limpo, pssshhewww — eu já saía como um foguete pra brincar. (Lembra do que eu disse? Nasci no futebol.). Futebol não foi apenas o meu sonho, mas o sonho do nosso Pai, do nosso avô, o sonho de toda família.
Você acha que quando papai estava dormindo embaixo da bilheteria do estádio do Palmeiras, ele teria sonhado que seu filho jogaria lá um dia?
Quando eu tinha 15 anos e me tornei profissional no Palmeiras, posso dizer honestamente que alcancei tudo que eu sempre quis na minha vida, graças a Deus. Consegui comprar uma casa pra mamãe e tirar nossas duas avós de Chaparral, que era perigoso. Depois daquela conversa que tive com o Pai no sofá, eu sabia que agora tinha alcançado meu primeiro objetivo: ajudar minha família a ter uma vida melhor.
Que momento! Mas também… cara… que alívio. Quando você era bebezinho, já vivíamos uma vida muito diferente, e a nossa vida vai continuar mudando nos próximos anos.
Dentro de alguns meses partirei para a Espanha e você vem comigo. Real Madrid…. Esse era o meu terceiro objetivo e foi o único que nunca ousei escrever. Quando era pequeno, eu não tinha celular ou qualquer coisa, então eu costumava pegar emprestado o computador da mamãe e assistir aos melhores momentos dos jogos do Real Madrid, desde os 7 ou 8 anos. Eu sei que você é muito jovem para lembrar desses nomes, mas eu estava obcecado com aquela equipe de 2013-14 com Cristiano, Modric e Benzema. Essa foi minha porta de entrada na história do clube. Comecei a entrar no YouTube e aprender sobre o Galácticos e depois cada vez mais fundo — Puskás, Di Stéfano… Pode acreditar, em Madri, você vai ouvir falar mais sobre esses craques.
Você pode aprender qualquer coisa no YouTube. É mais ou menos como uma universidade. Mais do que ninguém, eu assisti Cristiano. Não apenas os melhores momentos, mas também o quanto ele se dedicou e o que outros diziam sobre sua mentalidade. Com ele, aprendi que o trabalho duro é até mais importante que o talento.
Espero que possa conhecer o Cristiano um dia. Enquanto escrevo estas palavras, isso ainda não aconteceu. Mas o filho dele me segue no Instagram, então, espero que no momento em que você estiver lendo este texto, eu já tenha conseguido apertar a mão dele. Se Deus quiser, vai correr tudo bem no Real Madrid e na minha carreira, e o Cristiano vai me seguir! Talvez você e eu! Hahaha. Conhecer Cristiano Ronaldo. Esse é o objetivo número 4. A meta número 5 é que o resto desta temporada com o Palmeiras termine bem, com o nosso time vencendo o Paulistão mais uma vez.
O objetivo número 6… Na verdade, tenho uma história engraçada sobre isso. Quando fui visitar o Real Madrid pela primeira vez há alguns meses, muitas coisas incríveis aconteceram. Quando conhecemos Florentino Pérez, ele olhou nos olhos do Pai e disse: “O Real Madrid será o único clube que tratará Endrick como um filho.” Isso foi muito impactante pro Pai.
Conheci o Bellingham, aquele cara muito bom que sempre marca para mim no PlayStation, e todo mundo o chama de Jude, então eu disse a ele: “Ei, Jude, no meu próximo gol, vou fazer sua comemoração.” Quando marquei, mandei o vídeo para ele no Instagram e ele repostou.
Até recebi alguns conselhos do Ronaldo Fenômeno. Tudo aconteceu muito rápido, como se eu estivesse em um sonho. Mas o que mais me lembro é quando entrei no vestiário e o Modric falou comigo. A camisa 10 estava pendurada e ele apontou para o assento ao lado ele e disse: “Número 9 e Número 10. Quem sabe… na próxima temporada, talvez você se sente do meu lado”.
Isso mexeu comigo, de verdade. Eu pensei: Cara, se o Modric acredita que sou digno de usar a número 9, então devo ser pra valer mesmo! Ainda não cheguei a Madri, por isso não sei, mas espero um dia usar a 9 do Real Madrid. E quanto ao objetivo número 7? Quero minha própria casa em Madri com um escritório, pra poder colocar minha lousa bem grande com meus objetivos! Hahaha. A Mãe ainda não me deixa colocar uma lousa na casa dela!
“Não tem espaço pra isso, Endrick! Simples assim!” Você sabe como ela é. Temos que ouvir e respeitar. Na verdade, eu tinha outro objetivo, mas não vou numerar aqui, porque já foi alcançado. Esse objetivo é que você viva a vida que desejar, seja ela qual for.
Durante três gerações, ou talvez mais, a nossa família teve que perseguir o sonho do futebol, tentado mudar nossas condições. Mas agora você pode fazer o que você quiser. Você pode ser médico ou advogado, ou talvez, já que vamos para a Espanha, no país de Nadal e Alcaraz, você pode se tornar um tenista profissional. Você já está correndo atrás da bola, como eu. Então você pode ser jogador de futebol, se quiser. Mas você não tem que ser. Não há mais estresse, graças a Deus, graças à Mãe e ao Pai, e graças ao futebol.
Quero que você aproveite sua vida como quiser, irmão. É o meu presente pra você. E agora é aqui que esta carta termina e o futuro começa. Veja bem, as pessoas me perguntam o tempo todo sobre o Real Madrid e a Seleção Brasileira e como acho que será minha carreira. Mas você sabe qual é a real? Eu simplesmente não sei.
Na vida, não sabemos como será o dia de amanhã. Não sabemos se teremos um amanhã. Tudo o que podemos fazer é agradecer a Deus por tudo que Ele nos deu. Espero que você entenda, irmão. A vida que estamos vivendo agora não surgiu do nada. Foi conquistada, com muito trabalho e muitas lágrimas. Mamãe sempre diz que um único erro pode fazer com que tudo desmorone, e ela está certa.
No momento em que esquecemos de onde viemos, corremos o risco de nos perdermos. É por isso que estou te dando como presente a história da nossa família. A Mãe comendo a broinha de milho velha. O Pai dormindo embaixo da bilheteria. A Mãe chorando no banheiro. O Pai chorando no sofá. Que você sempre guarde isso em seu coração. Te amo, Mano. Do fundo do meu coração, Endrick Felipe Moreira de Sousa, ATACANTE.