Uma das decisões mais marcantes da vida de João Vitor Santos, aos 29 anos, foi doar seus óvulos para a mãe adotiva, de 49 anos. Homem trans, ele encontrou na medicina reprodutiva uma maneira não só de apoiar o desejo de maternidade da mulher que o criou, mas também de fortalecer o elo afetivo entre os dois. “Foi minha forma de retribuir o amor que sempre recebi. Em nenhum momento minha identidade de gênero foi um conflito. Pelo contrário, me senti mais conectado com minha história e com ela”, compartilha.
O procedimento foi realizado na Clínica Huntington de Medicina Reprodutiva e resultou na coleta de 14 óvulos. Desses, quatro embriões foram formados e os demais seguem congelados. Apesar de sua história ser rara, ela representa um movimento crescente no Brasil: o aumento da ovorecepção como alternativa para realizar o sonho de ter filhos.
Cresce o número de bebês nascidos por FIV com óvulos doados
De acordo com a Red Latinoamericana de Reproducción Asistida (Redlara), entre 2019 e 2023, cerca de 18.500 pessoas doaram óvulos no país. Mais de 5.000 crianças nasceram por fertilização in vitro (FIV) a partir dessas doações, ou seja, 12,5% dos nascimentos por FIV nesse período.
A doação de óvulos é regulamentada no Brasil e pode ser feita de forma anônima ou voluntária, segundo as diretrizes do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Anvisa. Diferente de países como Espanha e Estados Unidos, aqui não há pagamento pelo procedimento, o que torna o processo mais desafiador. Isso significa que o sucesso da ovorecepção depende diretamente da solidariedade de quem decide doar.
A tecnologia entra em cena para ajudar
Mesmo com obstáculos, os avanços científicos e tecnológicos têm impulsionado a ovodoação no Brasil. Um dos recursos mais inovadores é o Fenomatch, um sistema que usa inteligência artificial para encontrar a doadora mais parecida com a receptora, com base na semelhança facial.
“É como um algoritmo que analisa milhares de pontos do rosto da paciente a partir de uma simples foto, e encontra a doadora mais parecida. Isso traz mais segurança e conforto emocional”, explica Ana Paula Aquino, médica especialista em reprodução humana na Clínica Huntington. O sistema avalia mais de 12 mil pontos da face e apresenta a compatibilidade em forma de porcentagem, facilitando a decisão para muitas famílias.

Além do Fenomatch, a clínica também desenvolveu a MAIA, uma inteligência artificial aplicada no laboratório de embriologia. Essa tecnologia analisa os embriões com base em padrões morfológicos e de desenvolvimento, identificando aqueles com maior chance de sucesso na implantação, o que pode acelerar o caminho até a gravidez.
O papel da epigenética na gestação
Outro campo que vem ganhando atenção nas consultas é a epigenética, que estuda como fatores ambientais, emocionais e comportamentais influenciam a forma como os genes se expressam. Mesmo que o material genético do embrião venha da doadora, o corpo da mulher que gesta o bebê tem um papel crucial.
“Mesmo que o bebê carregue o material genético da doadora, o corpo da mulher que gesta interfere no desenvolvimento fetal. Alimentação, emoções, rotina, tudo isso deixa marcas. É como se o útero também contasse sua própria história genética”, explica Ana Paula.
A ciência a serviço do afeto
A doação de óvulos vai muito além de um procedimento técnico. É um ato de generosidade, confiança e, muitas vezes, de amor — como no caso de João e sua mãe adotiva. Ela mostra que os laços familiares não precisam ser genéticos para serem profundos e verdadeiros.
“Em um país onde a maternidade pode ser tardia, solo, plural e assistida, a ciência se alia ao afeto para criar novas possibilidades”, conclui Ana Paula Aquino. Com o avanço das tecnologias e o olhar mais amplo sobre o que é ser família, a ovorecepção ganha força e mostra que, quando há vontade e apoio, o sonho da maternidade pode se concretizar das formas mais diversas possíveis.