Aproveitarei as comemorações do Dia do Médico, no último 18 de outubro, para propor uma reflexão acerca da abordagem médica no contexto das pessoas com deficiência.
Vale mencionar que como engenheiro, não tenho a pretensão (e nem a competência) de me aventurar em questões técnicas ligadas à medicina. A ideia é apenas compartilhar experiências e aprendizados que a jornada como pai de crianças com e sem deficiência e como empreendedor social – à frente de uma instituição que promove inclusão (também) através de iniciativas de saúde e bem-estar – tem me proporcionado, a fim de sugerir novas interpretações e possibilidades a respeito da atuação dos profissionais da saúde neste campo.
Quero, com o perdão do pleonasmo, “começar pelo começo”: a notícia do diagnóstico da síndrome de Down do Pedro, meu caçula. Como já escrevi num dos meus artigos para esta coluna, receber a notícia de que o filho que você tanto sonhou não vai ser exatamente como se imaginou é um momento invariavelmente difícil para qualquer um. Em situações que não envolvem adoção, é muito pouco provável que alguém escolha ter um filho com deficiência – e comigo não foi diferente. Se considerarmos que eu praticamente não tinha informações sobre a Trissomia-21 e que, infelizmente, não tive a oportunidade de conviver com Pessoas com deficiência até então, fica fácil entender o tamanho da minha angústia ao escutar a obstetra da minha esposa dizer que “o hospital está desconfiando que o Pepo tem síndrome de Down”, no dia seguinte ao nascimento – como contei neste podcast. Este exemplo pessoal, porém vivido por milhares de famílias todos os anos no Brasil, faz-me levantar 2 pontos importantes:
- 1) A forma através da qual a notícia é dada: os profissionais da área da saúde, em geral, não estão preparados para a delicada missão de dar uma notícia inesperada e indesejada. Como a frequência deste tipo de ocorrência é baixa (no caso da síndrome de Down, estamos falando de 1 para cada 700 nascimentos no Brasil), a maioria tem poucas chances de treinar esta situação ao longo da carreira. Além disto, os cursos de medicina, enfermagem e afins não costumam dar a ênfase necessária à questão nas grades curriculares. O resultado é desanimador: muitos pais e mães recebem a informação de forma traumática. Uma avaliação feita com quase 200 famílias atendidas pelo Projeto Laços, iniciativa de acolhimento para o momento da notícia do Instituto Serendipidade, mostrou que mais de 80% delas classifica como “infeliz ou desastrosa” a maneira como recebeu o diagnóstico da deficiência dos filhos. São comuns relatos de frases como “sinto muito, tua filha tem síndrome de Down. Que pena que não pegamos isto no pré-natal” – ditas sem o menor pudor por quem deveria agir como porto-seguro e não como exemplo de capacitismo. A pediatra Ana Claudia Brandão, mãe de uma pessoa com síndrome de Down e especialista no assunto, deu uma verdadeira aula a respeito nesta live que fizemos em 2020.
- 2) O conteúdo da mensagem: é importante também que os responsáveis por dar estas notícias reflitam sobre o que é mais adequado falar numa ocasião de vulnerabilidade como esta. Que conteúdo pode ser transmitido, de maneira a suavizar o momento? O que não devo falar em hipótese alguma? Talvez não exista uma única resposta correta, mas me arrisco a dizer que muitos pais e mães quando recebem o diagnóstico, especialmente de forma pouco cuidadosa, estão pouco interessados naquele instante em saber quais remédios serão necessários, quantas sessões de fisioterapia ou de fonoaudiologia as crianças terão que fazer e por quanto tempo. Na verdade, eles estão bem mais preocupados em saber se “haverá luz no fim do túnel”. Assim que a médica nos contou sobre a síndrome de Down, minha cabeça deu um nó e eu só pensava em saber se o Pepinho iria ser feliz. Queria desesperadamente que alguém aparecesse, segurasse a minha mão e me dissesse que ele teria condições de sonhar, alcançar tudo aquilo que quisesse e pudesse – e que seria protagonista da própria história. É muito comum a notícia ser dada por profissionais que insistem em dizer que “com muitas sessões de terapias, logo ele(a) ficará bom”. Arghh, eu até me arrepio só de pensar.
A primeira mensagem importante que se conecta com a proposta deste artigo é sobre a importância de um olhar empático por parte dos profissionais de saúde. Estou me referindo a uma pergunta básica que todos deveriam se fazer sempre antes de agir em qualquer situação: “Como eu gostaria de ser tratado se fosse comigo?”. Não saber a resposta não é um problema. O que não é plausível é não se disponibilizar a buscá-la, resultando em abordagens pouco humanas, sem nenhum afeto e que criam (novas) feridas que custam cicatrizar.
No início de 2019 o Serendipidade, em parceria com a ONG Apoie, montou um ambulatório de atendimento para adultos e idosos com deficiência intelectual que frequentavam a instituição em São Paulo/SP. A iniciativa foi idealizada e coordenada pelo Dr. Marcelo Altona, clínico-geral e geriatra do Hospital Albert Einstein e do Hospital das Clínicas, e tinha como objetivo promover um volume de atendimentos para mapear as necessidades de saúde deste grupo populacional, de forma a gerar e compartilhar informações que pudessem contribuir para a revisão e criação de protocolos de assistência. Além disto, não conhecíamos na época nenhum geriatra no Brasil com experiência prática relevante de atenção a estas pessoas, cuja expectativa de vida vinha aumentando muito (considerando apenas a síndrome de Down no país, ela passou-se de 35 para 62 anos em menos de 3 décadas) – e portanto, achamos uma boa ideia tentarmos mudar este cenário, como detalhadamente reportou o jornal O Estado de SP nesta matéria.
O curioso é que, depois de 3 meses realizando consultas num grupo de 60 pacientes, o Dr. Altona nos avisou que a expectativa inicial não seria atingida. Imaginamos que ele encontraria um cenário no qual estas pessoas, sujeitas a um processo de envelhecimento precoce e com acesso restrito à medicina preventiva e de qualidade, potencialmente apresentariam doenças e comorbidades. Mas, na prática, isto não aconteceu: nenhum paciente, por exemplo, precisou ser encaminhado ao laboratório com quem estabelecemos convênio para os exames que se fizessem necessários. O Dr. Altona relatou que as demandas não estavam relacionadas à saúde física, mas, sim, a questões sociais e emocionais. O que este grupo de novos amigos lhes pedia era algo, em tese, bem mais simples: eles queriam apenas autonomia. Esta turma desejava poder estudar, trabalhar, namorar, casar e morar sozinhos. Eles gostariam de ter liberdade para andar pela cidade, ganhar o próprio dinheiro, ir ao cinema, fazer compras e viajar. A maioria deles vivia com os pais – que eram ainda mais idosos – e nasceram numa época na qual o termo “inclusão” ainda era uma ideia utópica. Não havia Lei de Cotas, nem Lei Brasileira de Inclusão e não se falava em acessibilidade. Uma fase na qual era comum vermos (ou “não vermos”, neste caso) pessoas com deficiência trancadas em casa, escondidas pelas famílias, sem frequentar escolas e sem acesso ao mercado de trabalho. Ou seja, à margem da sociedade – sendo por ela encaradas como um grande problema. As consequências deste processo degradativo são óbvias, incluindo a construção de uma relação de codependência tão profunda com os pais – a ponto de impedi-los de usufruir de direitos básicos – resultando no clamor uníssono por liberdade durante as consultas médicas na sede da Apoie.
A grande lição que esta experiência nos proporcionou foi um despertar de consciência. Ao envolvermos outros médicos no debate – incluindo um grupo da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e profissionais de outras especialidades, entendemos que esta triste realidade era (é) comum à maioria das pessoas mais velhas com deficiência no Brasil. Chegamos à conclusão que parte da solução – que beneficiaria não apenas idosos, mas crianças e adultos também – passa pela transformação do olhar médico para o tema inclusão, aprimorando a formação de estudantes universitários, qualificando os profissionais já formados e ampliando a discussão para as universidades, o poder público e para o ecossistema de saúde como um todo.
Um dos exemplos que mais me orgulha de iniciativas nascidas a partir de então foi a criação do grupo médico assistencial (GMA) focado em deficiência intelectual do Hospital Israelita Albert Einstein: um time interno de especialistas em diversas áreas (médicos, enfermeiros, terapeutas, educadores, psicólogos, pesquisadores e empreendedores sociais) que desde novembro de 2020 vem aprimorando conhecimentos em relação a esta condição, que acomete quase 3 milhões de brasileiros – e cujos desdobramentos já estão ajudando a mudar sua realidade, como descrito neste link.
Não se pode reformar o passado, mas é possível construir um futuro mais inclusivo na medicina voltada às pessoas com deficiência. Não é aceitável encontrarmos profissionais que atendam crianças com paralisia cerebral e que não saibam que elas podem (e devem) frequentar escolas regulares. Não é tolerável – como retratou o documentário Crip Camp – um cirurgião que, ao atender uma mulher que fazia uso de cadeira de rodas e se queixava de dores na região pélvica, assuma que era apendicite (quando na verdade era apenas uma gonorreia), extraindo o órgão por assumir que a cadeira a impedia de ter vida sexual. Não é possível escutarmos técnicos da saúde falando em “cura do autismo”. É constrangedor ainda ver médicos usando termos como mongol ou retardado para se referir à pessoas com T-21.
Um bom primeiro passo é assumir que existem barreiras entre a maioria dos médicos que atendem pessoas com deficiência e o (re)conhecimento de seu meio social. É como se a porta do consultório não se abrisse ao que existe fora dele – lugar onde os acontecimentos e possibilidades têm tanta importância para a longevidade dos pacientes quanto os remédios receitados para sanar qualquer crise. É preciso que os profissionais da saúde enxerguem as pessoas antes das deficiências, respeitando as individualidades, pensando sempre no campo das possibilidades, em busca de protagonismo, autonomia e eliminação de preconceitos.
Os bons exemplos já existem e muito têm contribuído – mas ainda não é o suficiente. Os médicos que já têm um olhar mais humano, plural e holístico sabem que este processo ajuda a saúde, o bem-estar e a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade, além de aproximá-los ainda mais do juramento feito na graduação e da nossa realidade social. Afinal, pertencemos a um mundo diverso, composto por seres humanos únicos e que têm o direito de viverem da forma como são ou querem ser. E uma sociedade onde todos cabem e existem, é melhor para todos nós!