Maid, a nova série da Netflix, estrelada por Andie MacDowell, e sua filha na vida real, também atriz, Margaret Qualley atuando como mãe e filha, têm despertado muitos tópicos interessantes nas consultas dos consultórios terapêuticos por aí.
Não somente pelo fato intrigante das duas atrizes também serem mãe e filha na vida real, mas por cativar o espectador com um enredo muito bem amarrado, em que é fácil empatizar com vários personagens, seus dramas, suas reações, sua trilha sonora primorosa, uma edição cheia de recursos atuais para explorar os pensamentos dos personagens, além de direção de arte que nos transporta para cantos gelados de subúrbios americanos nos anos 90.
Alex, personagem de Margaret Qualley, tem um namorado emocionalmente e financeiramente abusivo, um pai até então inexistente, uma mãe com problemas psíquicos que funcionam como ferramentas de sobrevivência de abusos que ela mesmo passou e um cenário onde abastecer o carro ou pagar por um picolé pode levar a protagonista a um pico de ansiedade digno de surto.
Alex é um retrato do que é ser produto do desamparado familiar, de uma família disfuncional e da falta de horizonte de quem é extremamente impactado pela falta de recursos financeiros, emocionais e não pela falta de conhecimento. Alex passa por momentos brilhantes, em que recusa aceitar sua vida como de alguém que sofreu abuso, uma vez que o abuso social, emocional e financeiro são dos mais difíceis de se entender, e mais ainda, de se ver afetado por ele. Ela inicia a jornada para liberdade em um abrigo para vítimas de violência doméstica, primeiro por desespero por moradia, até compreender que a situação dela realmente cabe no resultado de uma relação abusiva, pois aos poucos percebe o quanto os abusos diários, pequenos ou grandes, acabam com o poder de tomarmos decisões, identificarmos nossos próprios desejos, etc.
Ao longo da série, a personagem demonstra que a capacidade de resiliência de alguém superar tamanhas dificuldades passa pela percepção de estar numa condição temporária, e sua força é claramente impulsionada pelo amor a filha, mas com o desenrolar da trama, mais ela se afunda no imbróglio dos programas assistenciais americanos, na incapacidade de ver saída, enquanto outras personagens femininas vão emergindo e mostrando o quão presas permanente em situações sem esperança, como rígida dona da agência de empregadas, uma mexicana marcada pelo preconceito de subclasse.
A percepção deste estado de estagnação é desconfortável, e fica mais incômodo conforme vamos percebendo que a série não trata só das questões de uma família disfuncional, ou do trauma transgeracional do abuso emocional das relações parentais, mas também escancara, numa sequência de tapas na cara, o ainda falho e tão insuficiente “empoderamento feminino” na sociedade, que é um tópico tão popular nas rodas de adolescentes ou jovens de faculdade, mas tão difícil de ser vivenciado na integralidade. E com isso, acho que a série chega numa discussão primordial, feita de forma tão singela, sobre as sequelas do patriarcado.
O patriarcado, tido como um sistema social baseado em relações e estruturas que favorecem os homens, em especial o homem branco e heteressexual, historicamente ignorou as mulheres e tantas outras ditas minorias, é este mesmo sistema social e organizacional que o empoderamento feminino, feminismo, ou direitos civis dos anos 60 nos EUA ou os direitos humanos atuais, diz tentar derrubar, porém que sabemos que não faz nem cócegas na barriga do problema com as mudanças válidas conseguidas. A série demonstra nas pequenas ações da rotina, o quão engendrado o problema realmente está. E aonde Maid me surpreende é no vasto campo de cenas que proporciona um diálogo sobre os efeitos do patriarcado, não só focando na mulher como vítima, mas também nos homens como vítimas de uma cegueira para compreender o desprivilégio da posição feminina no modelo da família tradicional.
Sempre digo aos meus pacientes pais, principalmente às mulheres e mães, que somos nós mulheres que criamos (historicamente falando) nossos filhos para serem fortes, enfrentarem problemas com pulso firme, a não serem frouxos, a não ligarem para besteiras. Frequentemente vejo e ouço um pai ou até uma mãe indicando na maré da sobrevivência dos parquinhos, conselhos como “se bater levou”. Pois é, então, somos nós mulheres, que ao criar estes filhos, casamos com estes homens na busca de refúgio, de garantias, de proteção e depois de alguns anos na relação, trazemos nossos casamentos para consultórios como o meu, para reclamar como os maridos não sabem nos valorizar, não sabem conversar sobre os sentimentos, ou não sabem reconhecer os erros. E fazemos isso, num suave, ou nem tanto, tom feminino de superioridade, em que maridos acolhidos, intimidados se encolhem na sala de terapia esperando tomar pau.
A série demonstra a insatisfação do abusivo namorado de Alex, personagem que tenta também fugir da própria referência de fracasso da família abusiva, modelado com o comportamento que lhe foi ensinado. Quase todo abuso é vivenciado como um padrão que se repete. Isso não perdoa o impacto dos atos, mas gera no espectador uma empatia em momentos como o do casino, onde é fácil torcer pela recuperação da relação. E é após ele iniciar a recuperação do alcoolismo, que vemos os efeitos da cegueira do patriarcado numa visão masculina que é restritiva e descarta a questão central do livre arbítrio da namorada, Alex, quando ele se mostra verdadeiramente incapaz de entender o que há de errado em tentar ser ele o único a prover, restringindo novamente os direitos e liberdades dela e reservando o lugar do tomar conta da filha como única possibilidade para ela, e de novo, a prendendo na posição de mãe sem poderes, na família que eles têm.
O fio condutor que nos mantém esperançosos com a protagonista Alex é definitivamente o amor pela filha. Amor parental que é vivenciado pelo pai também nas cenas afetivas dele com Maddie, filha do casal de 3 anos, nos breves momentos de lucidez. Mas a série escancara a diferença de impacto que uma simples febre infantil ou uma crise alérgica gera na carreira profissional de uma mãe e o quanto o mesmo não acontece na carreira de um pai no dia a dia da vida da família. Enquanto não soubermos entender que nós, mulheres, não deixamos faltar para os filhos, e com isso os pais não decoram nem o nome dos xaropes de tosse, vamos prolongar o patriarcado e sua existência achando que os papéis precisam ser diferentes dentro de casa baseado no gênero de quem o exerce. Na série, Alex no desespero, pede ajuda novamente para o namorado, que pouco se vê obrigado a abrir mão do trabalho, enquanto ela não tem outra opção, e com isso, uma série de micro-tragédias desmontam sua autonomia constantemente. Nada disso reflete em falta de amor pela filha, mas sim na instituição do patriarcado, e quão pesado e incomunicável ele é.
Com a pandemia, e os efeitos dela nas famílias, os homens vivenciam hoje, mais de perto a invisibilidade do papel feminino no cuidado do mercado, no agendamento dos médicos, no acompanhamento da escola, e nisso, são os filhos que ganham. Porém na dinâmica de cada casal, a redistribuição, a comunicação e divisão de tarefas, ainda têm muito a progredir, para que as mães tenham minimamente condições similares de estabilidade na autonomia com trabalho e independência.
Voltando para série, quando vemos Nate – amigo que surge na série como possível príncipe encantado para Alex – tentar por diversas vezes ajudá-la em suportes financeiros e estruturais de forma incondicional, mesmo tendo ele se declarado por vezes interessado por ela, achamos que ele será a salvação da trama. Mas chega então o momento em que o suporte incondicional se torna condicional, que a iniquidade entre os dois persongens é latente e é impossível para Alex ter uma relação com ele. Isso é incompreensível para o amável Nate, e mais uma vez vemos que ninguém será capaz de salvar Alex, além dela mesma. É alarmante observar a falta de capacidade da personagem Alex, em se abrir com Nate, em tudo que envolve assumir para ele e para mundo o peso da relação com a mãe bipolar, que não é tão difícil em nenhuma outra situação na trama.
Paula, mãe de Alex, é uma personagem difícil de amar, especialmente quando você a vê falhar com Alex repetidamente no início da trama, mas alguns dos momentos mais comoventes da série se dão quando Alex está juntando os pedaços da mãe, seja por empatia ou pela maneira que concordar e proteger a ela mesma da fúria bipolar maternal, que direciona raiva, compete e agride. Paula não consegue cuidar de si mesma, muito menos ajudar Alex de uma forma significativa, mas o desespero e a vontade de ter uma mãe normal faz Alex deixar Paula tomar conta da filha em momentos que se provam ser erro contentes, e só ao fim da série, entendemos o quão presa no abuso próprio Paula também está, vítima repetida de violência doméstica. Ganhamos assim, uma compreensão dolorosa da personagem e como a criação de Alex atende ao próprio ciclo de abuso da mãe, e que a mãe muitas vezes foi unicamente capaz de projetar o mesmo fim para a filha, resistir ao abuso pela negação deste. Mas Alex sempre esteve sozinha.
A série Maid é um soco no estômago daqueles que tentam ignorar as estruturas de poder dentro das famílias e uma grande oportunidade para todas mulheres que ao assistir, irão inevitavelmente rever as histórias pessoais e as armadilhas que caíram. O que define abuso e o que define cegueira. Qual o impacto daquilo que eu causo e não vejo?