Dias atrás participei do simpósio sobre Crianças e Adolescentes na Internet, promovido pela Nic.br. Um dia que parei para ouvir profissionais e estudiosos sobre os impactos da Inteligência Artificial na vida de crianças e adolescentes. Nesse mesmo dia, o jornal NY Times publicou uma matéria sobre o impacto fatal da IA na vida e na família de Sewell, um garoto norte americano de 14 anos.
Há alguns meses Sewell decidiu por aquilo que se tornou uma febre muito triste entre adolescentes: tirar a própria vida. E um dos fatores presentes no processo de finalizar com a própria vida é o uso excessivo e desorientado de tecnologias digitais e suas consequências para a saúde emocional.

Se até dois ou três anos atrás o maior foco de atenção sobre o uso prejudicial de tecnologias de informação e comunicação, as TICs, eram as redes sociais e jogos online, agora estamos falando da Inteligência Artificial, com alarmes em grau máximo.
“Os pais e amigos de Sewell não tinham ideia de que ele havia se apaixonado por um chatbot. Eles apenas o viram ser tragado por seu telefone. Eventualmente, eles perceberam que ele estava se isolando e se afastando do mundo real. Suas notas começaram a cair e ele começou a ter problemas na escola”, diz o escritor do artigo.
Acho que passamos da hora da sociedade em geral e dos governos exigirem mais da indústria de tecnologias que conversam com crianças.
Todos concordamos que inovação e avanços tecnológicos trazem milhares de benefícios para a humanidade. Contudo, se as novas tecnologias não levam em consideração fatores éticos, seu processo de desenvolvimento não foi somente falho, mas ele foi doloso.
Seria exagero? Vamos pensar juntos. A presença da intenção de causar dano passa a ser considerada quando tecnologias acessíveis ou arquitetadas sem clareza sobre os “harm alarms”, ou avisos de possíveis danos colaterais para usuários, são disponibilizadas com uma narrativa totalmente positiva, como se nenhum dano estivesse presente. Dependência e vício tecnológico, intensificação da ansiedade infantil e angústia social, descolamento da realidade, escalada de conflitos como cyberbullying e abusos em ambientes digitais plugados são somente alguns efeitos colaterais.

O que temos visto se escancarar, depois de 10 anos de uso exagerado de tecnologias por parte de crianças e adolescentes, é justamente o contrário. Crianças e adolescentes são considerados muito mais no que eles trarão de benefícios para a indústria de tecnologias digitais do que no fato do processo de desenvolvimento não considerar os atributos da criança e do adolescente em seu favor, ou em jurisdiquês, no melhor interesse da criança e adolescente como usuário.
Esse não é um princípio presente somente na nossa legislação brasileira. Ele faz parte das Declarações e Convenções internacionais, das quais o Brasil é signatário juntamente com outras dezenas de países. Um princípio mundial. E ele não existe à toa.
Se não preservamos a infância, garantindo que ela aconteça de forma saudável e positiva, caminhamos para um processo de desestrutura da humanidade. Muito parecido com o que estamos vivendo hoje.
Famílias inteiras que nem fazem ideia de que, enquanto medicalizam os filhos para que eles se mantenham emocionalmente estáveis, a exposição dos filhos a estímulos no celular, tablet ou game estão fazendo o desserviço de adoecer a criança.
Uma geração inteira que não consegue ler e interpretar textos e contextos, que não consegue perceber limites em relação ao próprio corpo e autossegurança, que não consegue ter vida social porque não sabem conversar. A culpa seria exclusivamente das famílias?
Eu posso afirmar que não. Resistir à narrativas e propagandas de que “se o seu filho não tiver vida digital intensa ele está alienado e alijado do sucesso” é praticamente impossível para pais e mães que tiveram pouquíssima informação sobre o que exatamente o uso de tecnologias digitais pode provocar, para crianças e adultos. É uma relação indústria-família totalmente desequilibrada.
Nesse sentido, exigir que as empresas que conversam com nossas crianças e adolescentes garantam formas de instrumentalizar os pais para fazerem a mediação criança-produto é urgente. Porque esse seria o movimento básico esperado de empresas éticas e positivas.
Mas o cenário, até agora, tem se mostrado em desequilíbrio nesse game. Precisamos mudar esse cenário. Para o bem das nossas crianças, mas para o nosso bem também.