“Admitir nossas imperfeições humanas, ao invés de criar uma imagem idealizada e distante da realidade, é um ato de coragem que previne a construção de uma falsa moral. Só quando encaramos com clareza nossas inconsistências é que compreendemos o que está por trás delas, podemos alinhar nossas palavras e ações, promovendo a verdadeira integridade pessoal…”
Paulo Monteiro, filósofo
Ontem fui ao cinema com meu marido assistir ao filme Coringa: delírio a dois, com a brilhante atuação de Joaquin Phoenix que contracena com Lady Gaga, também maravilhosa em seu papel. Antes de mais nada, assistam! E fiquem tranquilos, não há spoilers nesse texto, embora fiquei bastante tentada.
Mas o que a fala de Paulo Monteiro e o filme do Coringa têm em comum? Muita coisa! Tanto Paulo quanto a temática do Coringa trazem à tona a figura da persona, o arquétipo criado na Psicologia Analítica por Carl Jung. Apenas uma pincelada no termo persona, para quem não é familiarizado com o conceito, Jung coloca a persona como algo inerente a todos os seres humanos independentemente de cultura ou época, e, dessa forma, é arquetípico (outro termo de Jung).
A persona é a máscara social que usamos para nos adequar às múltiplas situações em que vivemos e, assim, tem um caráter adaptativo. Nos permite ter atitudes e comportamentos adequados, ajustando nossa persona a diferentes condições. Ela é portanto parte da dinâmica normal de todos nós e apenas se torna anormal quando perdemos a capacidade de nos diferenciar da persona, nos confundindo e nos aprisionando a ela. Isso acontece quando vivemos a persona sem saber onde o eu termina e onde a persona começa.

E é exatamente a figura da persona que conecta a fala de Paulo Monteiro ao Coringa. Paulo fala que criamos uma imagem idealizada de nós mesmos e vivemos a partir dela, ou seja, essa imagem idealizada é nossa persona. Já Arthur Fleck, o nome verdadeiro do Coringa, se confunde com a persona Coringa que passa a ser sua face mais visível e também aquela que é admirada pelos outros. Tão admirada a ponto de Fleck se ver preso ao Coringa, ou seja, à sua persona. Os contornos de começo e fim de Arthur Fleck e Coringa se diluem, o eu e a persona se confundem.
Vamos agora trazer o tema da parentalidade para essa discussão. Quantas e quantas vezes não criamos uma persona de pai e mãe que não necessariamente reflete exatamente quem somos? Será que nossa persona algumas vezes atua atendendo ao que imaginamos ser certo, mas que não necessariamente reflete as coisas em que verdadeiramente acreditamos? Será que a persona pai/mãe ideal não está nos sufocando e impedindo de encararmos nossas imperfeições humanas, como diz o filósofo Paulo Monteiro? Será que a persona que construímos como pais é o que legitima nosso valor social diante de outros pais?

Não nego o que pregava Jung, claro, de que precisamos da persona para nossa sobrevivência em sociedade, mas hoje a “dose” de persona é que pode estar nos adoecendo. Em tempos de redes sociais, de grupos de Whatsapp, tendo a achar que estamos exagerando a “dose” da persona e perdendo a conexão com nossa intuição para a parentalidade. Mais vezes estamos criando o que deveríamos ser do que efetivamente o que somos como pais e mães.
Dialogar com nossa persona pode ser um bom caminho para encontrarmos o equilíbrio da “dose”, que, assim como os tratamentos medicamentosos, é sempre individual, não há uma régua comum. Não vamos encontrar a “dose” certa nos livros, nem na medida do que diz a amiga, nem em nenhuma influenciadora. Retomando a fala do Paulo, “Só quando encaramos com clareza nossas inconsistências é que compreendemos o que está por trás delas, podemos alinhar nossas palavras e ações, promovendo a verdadeira integridade pessoal…”
O convite está feito: assistam ao filme do Coringa e reservem um tempo para “encarar as inconsistências”. Garanto que o ingresso vale muito nos dois casos.