Se eu pudesse, acrescentaria ao Estatuto da Criança e do Adolescente um direito novo: “Toda criança tem o direito de conhecer a humanidade como ela é, e não como nós, pessoas adultas, gostaríamos que fosse”. Temos mentido para a infância, induzindo-lhe a pensar como ainda hoje pensamos: a deficiência é um simples detalhe da natureza, que de vez em quando é pega em flagrante cometendo seus deslizes. Bebês que nascem com deficiência seriam a materialização desses deslizes, “pontos fora da curva” no contexto de uma espécie supostamente “homogênea” e “sã”.
Trata-se de um delírio coletivo do mundo adulto. A infância não pode participar dele, sob o risco de não entender o sentido de uma sociedade inclusiva e, por tanto, não ter interesse em se empenhar por ela e dela participar. A deficiência é parte visceral da vida, jamais um pormenor dela. Suas causas são múltiplas e, mesmo com todos os exames, cuidados e procedimentos aceitos em determinados países, é impossível tirá-la de cena, durante a concepção, gestação, parto e vida.
Certamente, pré-natais dignos, públicos e gratuitos dariam à infância brasileira possibilidades de nascer e viver sem as deficiências evitáveis, aquelas causadas por falta de oxigenação na hora do parto ou pelo uso de certas substâncias na gestação, entre outras. Contudo, somos uma espécie vulnerável, que coleciona doenças e acidentes no decorrer da vida que, por sua vez, causam deficiência.
A falsa premissa de que a deficiência representa um “azar ocasional” se manifesta basicamente por três pensamentos – igualmente ultrapassados, e nem sempre revelados.
O primeiro é que, um dia, pessoas com deficiência irão desaparecer do mapa. Não acontecerá. No Brasil, em função das desigualdades sociais, espera-se um número cada vez maior de pessoas com deficiência, a maioria vivendo na pobreza.
O segundo é que, com sorte, é possível passar pela vida sem se deparar com a deficiência, no trabalho e na família. Não acontecerá. Nesta direção, crianças precisam ser orientadas para saber que só se tornarão profissionais competentes, independentemente do trabalho que escolherem, se entenderem de acessibilidade e inclusão. Nessa perspectiva inclusiva, a chegada de alguém com deficiência na escola, como professora, gestora ou estudante, não será um susto. Nem em qualquer empresa ou espaço público.
O terceiro pensamento concebe que pessoas com deficiência compõem uma constelação de seres exóticos que orbitam ao redor da Terra e que, de vez em quando, a invadem. A partir daí, podem ser rejeitadas e expulsas – ou podem até ser bem tratadas, mas como visitas temporárias nas casas, na sociedade e no planeta.
Como visitas, que “generosamente” recebemos, só pedimos que seja em dia e horário combinados antecipadamente, de preferência em dias de festa e celebrações de datas ligadas ao tema. Afinal, fica até mal não se emocionar em efemérides como “o dia da pessoa com deficiência”. Percebidas como visitas ou intrusas, dá no mesmo. A mensagem é que tudo bem adiar as necessidades específicas de se locomover, de aprender ou de se expressar de uma criança ou adolescente com deficiência.
Esse jeito estranho, estigmatizante e capacitista que define o modo como percebemos quem nasce com deficiência ou se torna pessoa com deficiência pode até parecer amor, mas é sobretudo uma forma de controle. Em nome desse “amor de controle”, tudo é feito com muito carinho – e nenhum direito. A deficiência integra um TODO humano indivisível, não classificável ou hierarquizável. Alterações genéticas, como a síndrome de Down, são 100% humanas.
Crianças precisam saber a verdade. Devemos contar que a humanidade é infinitamente múltipla e radical na forma como se manifesta no planeta, e que toda pessoa, desde que nasce, tem o mesmo valor humano, que não se mede por nada, não diminui ou aumenta. O valor humano é imutável.
Essa é a conversa que precisamos ter com as crianças. E se ao final dela vierem com a pergunta: “Por que algumas crianças têm deficiência?” Respire, aliviada, e responda: “Pela mesma razão que algumas não têm.”