**Texto por Cássia Gomes, locutora, atriz e jornalista, mãe de Otávio e Antônio, que a deixou cedo, mas a ensinou que flores brotam por entre as pedras. Acredita que a cura do preconceito está em cada um olhar para dentro de si com os olhos do coração
Dias antes de escrever esse texto eu ainda ruminava o acontecido. Meu filho Otávio e eu aguardávamos o Adalto, meu esposo, do lado de fora de um estabelecimento quando uma mulher que vinha em nossa direção ao nos notar acolheu a bolsa e usou as mãos como escudo. Tive milésimos de segundos para fixar os meus olhos nos olhos dela. A moça relaxou as mãos e se autoabsolveu. Brincávamos de pega-pega, e esse momento tão gostoso de conexão cedeu espaço para um mal-estar.
Com 36 primaveras, eu ainda não tinha vivenciado essa experiência. Temos saído pouco de casa e naquela manhã nos demos o privilégio de renovar o fôlego. Não foi bem isso o que aconteceu. Voltei para casa com falta de ar, e com um baita embrulho no estômago. Testei positivo para aversão reprimida. Infelizmente ainda não foi inventada uma máscara de proteção para evitar a propagação de partículas de intolerância.
Emudeci boa parte daquele dia. Tomei um banho demorado. Uma pena que aborrecimentos e sentimentos indesejados não escoam pelo ralo. Me encarei no espelho e me questionei sobre qual seria o momento adequado para falar abertamente com o pequeno sobre o indigesto preconceito racial – receio por errar. Marido e eu buscamos nos livros infantis o suporte à representatividade e ao diálogo com uma linguagem carregada de emoções positivas. Mas haverá algum dia em que saberemos abordar esse assunto espinhoso sem perder a ternura? Concluímos que por enquanto seguimos com a nossa leveza e beleza. O mundo que se cure.
Mas, ainda assim dói educar para um provável embate. Descortinar as histórias ácidas e irracionais recorrentes em nossa sociedade é como perfurar uma ferida aberta. E na educação do nosso pequeno infante primamos por valores como respeito, honestidade, empatia, e muitos outros, que certamente fazem parte de todos os lares dos pais que aqui me leem, no entanto, desde que abrigava Otávio na fortaleza do meu ventre eu tinha a convicção de que pais e mães pretos despendem de uma energia sobre-humana, que vai além desses valores essenciais para a formação de qualquer cidadão de bem.
A criação de crianças negras contempla nutrir a saúde emocional delas para lidar com a iminência de hostilidades que preterem socialmente a sua identidade e a sua integridade. Coragem, coragem, é o que digo para mim, para nós. Ainda sobre quando estava grávida, eu passei praticamente os 9 meses repetindo uma sequência de palavras em alto e bom som para abastecer de autoestima a memória afetiva do pequeno desde a vida intrauterina.
“Você é um menino calmo, tranquilo, inteligente, seguro e feliz”. Uma trilha sonora que ele verbalizou ao esboçar as primeiras palavras. Um encorajamento para construir uma personalidade forte, com a intenção de prepará-lo a reagir com mais assertividade e menos agressividade, porque acredito que as principais habilidades são aprendidas no ambiente familiar, e se chega aos corações com palavras, amor e consciência.
Dito isso, quero dizer que nós pais somos os responsáveis por ajudar a construir um repertório de afeto e respeito às diferenças, que deve estar presente nas relações desde muito cedo. Isso faz parte da formação humana. Deixou de ser novidade, é um assunto batido, porém fundamental para a desconstrução do preconceito de cor. A reação da moça que nos viu na rua só confirma a sua falta de educação, e se ela for mãe lamentavelmente irá reproduzir o seu mal comportamento aos filhos.
Pais, mães, resgatemos dentro de nós aquela criancinha sedenta por aprender o novo, curiosa pelo diverso, necessitada pelo social, isenta de preconceitos, e a projetemos para a vida adulta. Assim iremos tecer juntos uma nova sociedade capaz de se encantar com um mundo feito de misturas e cores.